A vida perderia muito de sua graça sem as inconstâncias que teimam em nos rondar, lembrando-nos de nossa fraqueza invencível, nossa indelével covardia, nosso menoscabo pelo que tem mesmo valor, nosso apego à glória quimérica do mundo. A entidade superior que rege o que se vê e o intangível, desinteressada das tergiversações morais do gênero humano, mas silenciosamente aflita pelas decisões quase sempre erradas que o homem faz acontecer, faculta-lhe a oportunidade de abandonar o caminho pelo qual vai gostosamente se perdendo a fim de tomar outra direção, antes que as luzes se apaguem, que se desfaça o palco e tudo se desvaneça, antes que seja tarde demais. Essa ânsia por sucesso, estado meio sobrenatural que uma privilegiada minoria alcança e para o qual ninguém dispõe de uma explicação racional e plenamente satisfatória, demanda muitas vezes largar tudo, abandonar os arcaicíssimos hábitos que, de tão entranhados em nossa carne e em nosso espírito já nos compõem, e chegar ao mais fundo que pode haver em nós, autossacrifício que por seu turno pode degringolar nas armadilhas que nos engolem e arrastam-nos para a correnteza violenta do infortúnio, e a partir daí, o mais brando desejo de salvação é mero delírio.
O ridículo, o patético, o dramático da vida tem tanta beleza quanto a história de amor mais tolamente serena, com a ressalva de que histórias de amor serenas podem nunca nos fazer ter o gosto do devaneio que aparta as nossas vidas da espiral de angústia e desespero e que todos os outros homens enfrentam. Heróis e heroínas padecem de males que homens e mulheres que nunca hão de se elevar para além do chão da mais pedestre humanidade jamais irão conhecer, e nem sempre estão dispostos a escalar a muralha de desafios que pretensamente os separa dos prosaicos mortais cá embaixo — quando não são acometidos de uma indolência, de um fastio moral, da abjeção e da ignomínia, que os equiparam ainda mais a todo resto.
Tonya Harding fez da vida seu pedestal e seu limbo, em que chafurdou com prazer e medo. A patinadora, ícone do esporte entre os anos 1980 e 1990, passou a vida tentando escapar do modelo de abusos e negligência iniciado ainda em tenra idade — primeiro na convivência obrigatória com os pais, depois num casamento infeliz com o homem que a fez saltar das reportagens amenas sobre campeonatos e disputas olímpicas para as páginas dos cadernos de Polícia dos jornais de todo o mundo. Craig Gillespie tenta sintetizar o tormento de sua protagonista em “Eu, Tonya”, relato pungente, cheio de reviravoltas e das encrencas de uma mulher em busca de uma identidade que quiçá nunca tenha tido, a literalmente esquivar-se dos golpes do existir, materializados na psicopatia da mãe e na truculência passional do primeiro marido, sequências que vêm como as ondas do maremoto de tragédias que encharcou-lhe, até quase perdê-la irremediavelmente.
Gillespie leva o espectador por um passeio macabro pela vida de Tonya, da infância traumática em Portland, Oregon, no noroeste americano, à ascensão parcial, árdua e nunca integralmente concretizada no panteão do esporte dos Estados Unidos. Steven Rogers opta por abrir seu roteiro com entrevistas imaginárias de Tonya; Jeff Gillooly, vivido por Sebastian Stan, o primeiro dos três homens com quem se casou e figura de destaque ao longo de sua curta e acidentada carreira, para o bem e para o mal; e, a cereja podre desse bolo amargo, LaVona Fay Golden, a mãe, a agressora, a tirana, mas também a única a apostar em Tonya.
Margot Robbie e Allison Janney protagonizam esses momentos de embate e uma ternura agridoce genuinamente doída ao longo de duas horas, e a animosidade de mãe e filha projeta-se do filme para quem assiste. Uma Robbie ainda despontando para o estrelato, depois de “O Lobo de Wall Street” (2013), de Martin Scorsese, em que roubou a cena, e Allison Janney, sempre soberba, disputam a atenção do público cabeça a cabeça; nesse meio-tempo, o diretor pontua a narrativa com as participações de Tonya em torneios bastante obscuros, até levar-nos ao Ccampeonato Nacional de Patinação Artística, em Detroit, num distante 1994, momento que marca a descida ao inferno da atleta e da mulher.
Filme: Eu, Tonya
Direção: Craig Gillespie
Ano: 2017
Gêneros: Drama
Nota: 8/10