Nossa lingerie jamais será vermelha

Nossa lingerie jamais será vermelha

Não que esse pessoal da esquerda não goste de um animado clima de prostíbulo, mas, o que tinha de patriota dentro daquele bordel era uma verdadeira festa. Alguns tinham acabado de chegar da capital federal, onde invadiram, pilharam e depredaram palácios. Até o pai de família que houvera defecado sobre o brasão da república durante a diarreica insurreição dos golpistas — em nome de Deus e da família — estava presente no local.

A maior parte dos convivas tinha perdido a dignidade, a vergonha na cara, o medo de fazer papel de ridículo e mantinha a bandeira armada a meio mastro, em sinal de respeito à morte da bezerra e ao fracasso da contenda contra a democracia. Nada, contudo, que não se resolvesse com generosos coquetéis de verga-tesa e ovos de codorna devidamente marinados em molho tártaro, servidos por garçonetes seminuas com as tetas em ordem e as carteiras vacinais em dia. Não sei quanto a vocês, mas, o lupanar só era bom se a gente comparecesse apenas para apreciar o movimento e tomar uns gorós. Colocar a mão na massa tinha lá os riscos.

Fazia dias que as redes sociais anunciavam pelos cotovelos que, não somente Jesus estava voltando, como estacionaria na casa da luz laranja — nenhum cidadão de bem concordava mais que a luz de referência dos rendez-vous tivesse a cor vermelha — uma Kombi carregada com queijos, quengas, o cego da piada, uma atriz de TV demitida sem justa calça e uma série de universitárias fora-de-série jubiladas pelos reitores de tanto tomar pau no interregno das provas trimestrais.

O ambiente era meio teatral, só que patético e de extremo mau gosto. A atmosfera local recendia à água sanitária e à fumaça de Jeronimo’s mescladas com spray de Cashmere Bouquet nos sovacos das transeuntes depiladas. Tudo parecia terrivelmente familiar, para não dizer, evangélico. Foi amplamente divulgado que Atchim! — a Rainha do Bumbum — faria uma aparição especial durante os shows de strip-tease e de sexo explícito — com ou sem a participação de muares. Muita gente pensava que Atchim! já tinha batido as botas, dependurado o sutiã ou virado pastora, mas, lá estava ela, firme e forme, uma guerreira a esbanjar disposição e vulgaridade, para o contentamento geral dos senhores.

A noite era de comemoração ao aniversário de Soninha Guilhotina, proprietária do famoso estabelecimento comercial, cuja fachada fora ornamentada por um mané, um puxa-saco que programara fazer sexo de graça com as garotas de programa, que dependurou um cartaz contendo os seguintes dizeres: “Estância da Xaninha: há 50 anos incluindo mulheres de vida difícil na prostituição”. Rezava a lenda que a septuagenária Soninha, ex-candidata a xerife do condado, recebera a terrível alcunha porque picava clientes violentos e mau pagadores pelo talo, valendo-se única e exclusivamente das mordeduras banguelas de suas portentosas comissuras labiais. Na dúvida se os limos genitais da empresária eram mesmo perfuro-cortantes, a clientela masculina comportava-se o melhor que podia para não arriscar os próprios colhões.

Por razões óbvias, havia dois leões-de-chácara a rugir na recepção, confiscando temporariamente os smartphones dos visitantes, conforme acontecia nos planejamentos estratégicos da milícia e nas famigeradas reuniões ministeriais do antigo governo teocrático. Sabia-se lá o que Deus tinha a ver com aquele tipo de gente, mas, vá lá: o marketing dos crápulas era mais forte do que a probidade dos cidadãos. O show começara com a exibição de Atchim! — a Rainha do Bumbum — que adentrou o palco sentada numa cadeira de rodas, com a bandeira nacional enfiada na parte de trás — na parte de trás da cadeira, ressalte-se. A turba de homens e de idiotas-trans delirou com o retorno triunfal da veterana que durante décadas fora considerada símbolo sexual dos presídios e das penitenciarias de segurança mínima. Dava-se sessenta anos de vida para ela, no máximo. Apesar da grave artrose nos joelhos e no quadril, Atchim! mandou bem, levantando a galera com uma daquelas apresentações de tirar pica-pau do oco e de fazer padre abandonar a batina.

O mestre de cerimônias, que parecia mais chapado do que Boris Iéltsin no auge do alcoolismo, anunciou que a noite seria encerrada com um bingo, cujo prêmio consistia numa noite de núpcias na companhia da mais recente integrante do plantel de meretrizes da Estância da Xaninha, uma beldade importada da Venezuela que aparentava ter menos do que os regulamentares 18 anos de idade previstos na lei. Além de tudo, constava nos fuxicos que a moça ainda fosse invicta de clava.

No ponto alto do espetáculo, entrou em cena a ex-atriz televisiva trajando o famoso uniforme oficial da seleção de futebol. O público, que já estava a três coqueirinhos para lá de Arroio dos Ratos, ovacionou a tigresa, atirando-lhe copos, moedas e camisinhas sabor moranguinho do nordeste. A performance bem poderia ter parado por aí, mas, a moça que queria impressionar os rapazes prosseguiu no rebolado e foi se despindo ao som do hino nacional na versão funk ostentação. De tão comovida, a plateia começou a chorar lágrimas repletas de espermatozoides.

No gran finale, a maior celebridade da impudicícia burguesia hipócrita desde Rita Vemaguet e seus virabrequins, arriou a ceroula azul marinho, valendo-se do adjutório de um pai de família que tinha comprado ingressos mais caros, perto do palco, brindando a todos os presentes com uma calcinha de renda-cidadã vermelho-escarlate a qual adentrara triunfante, caprichosamente, pelo seu majestoso, formidável sulco interglúteo. A chapa esquentou. Um espírito de porco ejaculou na maçaneta do banheiro. Muitos dos presentes mudaram de humor mais rápido que o evacuar de um patriota sobre a mesa na qual o imperador tinha redigido a sua carta de renúncia, antes de voltar para Pasárgada. Eram tempos de ódio, de intolerância, de nostalgia e de apologia à burrice e à ditadura militar.

Os marmanjos alterados apuparam a moça por conta da tal lingerie vermelha que remetia à grave ameaça comunista. Os mais engajados com as causas conservadoras da extrema-idiotice invadiram o palco e trucidaram a moça a socos e pontapés, deixando espalhados coágulos de sangue cujas cores, nos seus mais variados matizes, remetiam à esquerda progressista que acabara de ascender ao poder, devidamente legitimada pelos votos da maioria do povo, embora, negados até à morte pelos fanáticos incultos.

Um bebum infiltrado no cabaré — há sempre um deles solto por aí — gritou “Viva a democracia” e foi rapidamente contido e moído com o gelo picado das batidinhas de Bloody Mary e de Cuspe Sour. O resultado final ficou absolutamente impalatável para aqueles que ainda gozavam de um mínimo grau de sensatez e de juízo.    

Eberth Vêncio

É escritor e médico.