Como dois e dois são cinco, o meu nome é Caetano. Muitos me chamam de Divino Maravilhoso. Mas você pode me chamar de Leãozinho. Um estrangeiro? Um índio? Um comunista? Não enche!
Onde eu nasci passa um rio. Mas, a minha alegria atravessou o mar quando conheci Irene, uma fera ferida, uma tigresa de unhas negras e íris cor de mel, uma mulher, uma beleza que me aconteceu. Esfregando a pele de ouro marrom do seu corpo contra o meu, ela me falou que o mal era bom e o bem cruel.
O nosso estranho amor começou em Sampa. Alguma coisa aconteceu no meu coração, assim que cruzei a Ipiranga com a Avenida São João, a correr atrás de um trio elétrico, banhado de chuva, suor e cerveja. Debaixo dos caracóis dos seus cabelos, eu falei: Baby, você é linda, mais que demais, você é linda, sim, onda do mar do amor que bateu em mim. Irene riu. Irene riu. Irene riu e me disse, chapada de cajuína: Superbacana!
De noite, na cama, sob um circuladô-de-fulô, tomado por uma força estranha, enquanto pensava naquela gata extraordinária, cantei assim: O amor me pegou e eu não descanso enquanto não pegar aquela criatura. Você não entende nada? Vou explicar. Mora na filosofia: sempre fui tímido, espalhafatoso, mas, muito romântico. Concluí assim: isso só pode ser love, love, love. Em outras palavras, parecíamos os mais doces bárbaros. Eu tinha o dom de iludir. Era como se estivéssemos em “London London”. Uma coisa linda. Uma lindeza. Beleza pura. Felicidade. Fizemos nossa oração ao tempo.
Ela me contou que era atriz e trabalhara no musical “Hair”. Com alguns homens foi feliz, com outros foi mulher. Tinha muito ódio no coração, tinha dado muito amor, e espalhado muito prazer e muita dor. Mas, ela, ao mesmo tempo, me disse que tudo ia mudar, que ela ia ser o que sempre quis, encontrando um lugar onde a gente e a natureza feliz vivessem sempre em comunhão, e a tigresa pudesse mais que o leão. Daí a alcunha de O Leãozinho, sacou?
Gente, aquilo foi qualquer coisa! Eu me sentia odara. Era como eu se viajasse num trem das cores sobre trilhos urbanos. Em matéria de amar, eu passara por um longo tempo de estio. Tudo era alegria, alegria, totalmente demais. As garras da felina me marcaram o coração. Eu corri pro violão num lamento e a manhã nasceu azul, sem lua e estrela. Luz do sol. Escrevi pra ela esta elegia. E, uma vez mais, Irene riu.
Nota do editor — Por meio de enquete, os leitores da Revista Bula escolheram as dez mais belas e relevantes canções da obra do icônico baiano Caetano Veloso, patrimônio da música popular brasileira.
Se o próprio Caetano já confessou adorar essa canção, imagine só o seu bárbaro séquito de seguidores.
São Paulo é céu e é inferno. É o côncavo e o convexo. Caetano expressou como poucos o sentimento bipolar de quem chega pra vencer na louca megalópole latina: um misto de medo e êxtase, de desbunde e respeito.
Nada a declarar, senão que eu queria ter escrito esta letra.
Não há mulher que resista a uma declaração de amor como esta. Pode cantar e correr pro abraço, meu chapa. Ou melhor, pro abraçaço.
Meu coração não se cansa de ter esperança: canções como esta, apesar dos podres poderes vigentes, são atemporais. Será imortal a obra de Caetano Veloso?
Quisera ser arranhado pelas garras da felina. Quem era, afinal, essa tigresa, essa mulher apaixonante?
Chega de tristeza. Sem lenço, sem documento, nada no bolso ou nas mãos, eu quero seguir ouvindo pérolas da MPB. E eu vou. Por que não? Por que não?
A letra parece difícil, estranha, viajandona, é bem verdade. Mas — assim como a bossa — ela é phoda.
Porque desbanca panelaços na varanda, pseudodiscursos ufanistas e a hipocrisia, esta canção soa didática. Se fossemos mais espertos que os smartphones, deveríamos tocá-la, todo santo dia, nos pátios das escolas brasileiras, na hora do recreio. Mudar um país não é brincadeira.
Pensar além do próprio umbigo. Viver com dignidade. Trabalhar honestamente. Respeitar as diferenças. Abolir preconceitos. Tudo isso é matar um leão por dia. A tarefa torna-se mais branda quando se educa o sujeito. Disseminar boa literatura e música de qualidade faz parte da impressionante e gloriosa missão de deixar um mundo melhor às gerações futuras, com mais poesia e menos hipocrisia.