O melhor suspense da história recente do cinema chegou à Netflix e você não conseguirá abrir a boca e nem fechar os olhos Jonny Cournoyer / Paramount

O melhor suspense da história recente do cinema chegou à Netflix e você não conseguirá abrir a boca e nem fechar os olhos

Por mais que tente se convencer, o mundo nunca foi um lugar onde o homem se sinta em casa. Uma vez que vemos a luz da vida, já começamos a travar as batalhas que definem nossa própria vida, e a depender do empenho que lhes dedicamos, mais suave ou mais exaustiva será nossa jornada, o que por seu turno remete de imediato ao modo como poderemos reagir frente às tantas outras pelejas que decerto hão de tomar vulto — o que nossa vã filosofia nem sempre pode absorver tão organicamente. A inconformidade para com a própria condição relaciona-se diretamente à eterna necessidade do gênero humano quanto a buscar entendimento — sobre sua própria natureza, antes de mais nada, para que seja também capaz de equalizar seus ruídos, vencer seus receios, estrangular suas carências e suprir suas misérias. No mais fundo e bárbaro do espírito de todo aquele que crê, abriga-se a ideia da redenção possível para cada um dos males que nos assolam o existir, e é nessa esperança entre tola e vital onde gravitam os sonhos verdadeiramente salvadores, de progresso, de integração, de continuidade. Perversa demais, contudo, a vida encarrega-se de nos mostrar com toda ferina serenidade que, por mais que tentemos, de quase todo o solo onde colocamos os pés, nasce apenas uma erva amarga, que não alimenta e nem diverte.

O roteiro de “Um Lugar Silencioso”, escrito pelo próprio diretor, John Krasinski, em parceria com Bryan Woods e Scott Beck, se baseia numa família, em que Krasinski dá vida a Lee Abbott, o pai, uma figura inicialmente marginal na trama, mas que ganha espaço à medida que a história toma corpo. Junto com a mulher, Evelyn, interpretada por Emily Blunt, e os três filhos, Marcus, personagem de Noah Jupe, Regan, vivida por Millicent Simmonds, e o mais novo, de Cade Woodward, Lee tenta sobreviver no que restou do mundo depois da invasão de criaturas extremamente violentas que deram cabo de boa parte da população da Terra, tendo de também adotar um hábito essencial para tanto: fazer o máximo de silêncio de que forem capazes, uma vez que esses predadores impiedosos são dotados de uma audição muito superior à humana, o que lhes permite chegar ao local exato em que se escondem suas presas ao menor ruído que façam. Servindo de prequel e de extensão do filme que apresenta os Abbott e sua agonia escatológica, “Um Lugar Silencioso: Parte II” faz questão de frisar o argumento da invasão do planeta por monstros intergalácticos adicionando pouca novidade à história central, mas apostando alto nos efeitos especiais da equipe comandada por Charles Cooley e na edição de Michael P. Shawver, além de bisar a parceria entre Krasinksi e seus dois corroteiristas.

O horrendo e o poético em “Um Lugar Silencioso: Parte II” se equivalem e se completam. As metáforas de que o diretor lança mão — nada inventivas, mas dispostas na ordem e nos lugares precisos — até podem se perder em meio à avalanche de cenas com criaturas rabugentas e sanguinárias, mas fazem a festa dos críticos, e não por acaso sua segunda incursão nessa ficção científica plena de um lirismo estrategicamente oculto mereceu a justa atenção da Academia Britânica de Cinema e Televisão. Krasinksi ainda não abiscoitou seu BAFTA; entretanto, por mais aparentemente despretensiosa que seja a impressão que transmite com seus longas, é palpável seu anseio em superar-se e se pode supor seu frêmito diante de plateias que reagem com o devido susto quando encarada pelos alienígenas e do reconhecimento por sua sensibilidade artística. Logo na abertura, Lee avança um sinal vermelho numa cidadezinha abandonada na Nova Inglaterra, extremo nordeste dos Estados Unidos. Esse tropo sobre a falta de sentido ganha ilustrações mais gritantes pouco depois, quando o diretor emprega uma tela negra em que anuncia o primeiro dia da catástrofe que vem se avizinhando, num céu azul de nuvens esparsas sobre um campo de futebol. Evelyn, Marcus, Regan e o caçula entendem a gravidade do que vai acontecer pela fisionomia atônita de Lee, cuja único objetivo até o desfecho passa a ser preservar sua família — ou minimizar os danos.

Antes do dia 89, isto é, o 89° dia após o surgimento dos agressores, Krasinski narra os desdobramentos de duas semanas antes, momento em que “Um Lugar Silencioso: Parte II” começa mesmo a fazer sentido. A entrada em cena de Cillian Murphy como Emmett, um tipo entre vilanesco e messiânico, e a interação do personagem com Regan — cuja surdez real de Simmonds é reproduzida com a supressão do áudio — neutralizam quaisquer deslizes num enredo que peca pelo sobejo, nunca pela falta.


Filme: Um Lugar Silencioso: Parte II
Direção: John Krasinski
Ano: 2021
Gêneros: Thriller/Ficção Científica
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.