No transcurso de nossa jornada — regida pela entidade divina e diabólica que mantém-nos aqui por um tempo muito curto ou longo demais a nos submeter a caprichos cujas justificativas pessoa alguma no mundo não pode jamais conhecer de todo —, somos forçados a compreender o quanto antes que é preciso muito empenho para encontrar a felicidade possível, sós ou junto daqueles que conseguem provar-nos que estar vivo, num tempo e num mundo assolados por maldade e desalento, vale a pena. A solidão fundamental que ronda-nos a todos segue em nosso encalço do berço ao túmulo, incansável, e o aspecto eminentemente contraditório dessa evidência é que são recorrentes as situações nas quais não se percebe interesse algum de parte a parte — nem nossa pelo universo e muito menos do universo para conosco —, e a despeito da vontade atávica, ancestral e instintiva da fuga e do isolamento, persistimos na obsessão um tanto doentia de nos adequarmos ao que esperam de nós, esquecendo, ainda que apenas pelo tempo em que somos forçados a abdicar de nossa misantropia, dos traumas, neuroses e, principalmente, das deleitosas manias que fazem nosso cotidiano um pouco menos intolerável.
Nem tudo é só desespero, contudo. É difícil, mas sempre pode surpreender-nos o inesperado dos pequenos milagres da vida, e assim, sem mais nem menos, deparamo-nos com alguém que como por encanto, acaso ou destino, enxerga na vida o mesmo prazer que nós, justamente por guardar no mais secreto de si a chama que resiste à ferocidade dos temporais bravios. A amizade, o amor que se vivencia fora da cama, é o sentimento que Gerardo Olivares celebra em “4L”, road movie pleno dos saborosos clichês de produções desse gênero, também capaz de preservar no horizonte delicadezas que confirmam Olivares no lugar de um dos realizadores mais zelosos e sensíveis do cinema de nossos dias.
Corroteirista com Chema Rodríguez e María Jesús Petrement, o diretor situa seus personagens em pontos diversos do noroeste da África, mencionando em algum momento que um tal Joseba está à morte em Timbuktu. Tocho, o bêbado adorável de Hovik Keuchkerian, e Jean Pierre, o tipo meio enigmático de fortuna incerta vivido por Jean Reno, tentam restabelecer contato com esse homem, em nome dos anos dourados de delinquência juvenil nas Ilhas Canárias que volta a aflorar em uma ou outra passagem, mesmo que não saibam se ainda podem se considerar tão cúmplices quanto há quarenta anos. Os dois vão atrás de Ely, a filha que Joseba negligencia com particular empenho, e num movimento algo precipitado, Olivares inclui mais essa personagem no enredo. Sua sorte é que Susana Abaitua é plenamente hábil quanto a segurar as inconsistências do texto, o que acaba por conferir ao filme um nonsense involuntário. Ou alguém em sã consciência acredita mesmo que é factível a travessia do Dacar num Renault 1975, com capacidade de quatro litros, sem assistência técnica e os suprimentos de praxe, em que pese ter por recompensa o adeus a um velho companheiro de farras?
O último ato, quando Juan dos Santos dá, finalmente, cara e espírito a um Joseba moribundo, mas consciente, coroa “4L” de uma fantasia melancólica que desculpa sua falta de constância, dando fecho à narrativa na hora exata. Não permitir que nada sobre nem falte é sempre uma qualidade bastante louvável.
Filme: 4L
Direção: Gerardo Olivares
Ano: 2019
Gêneros: Comédia/Drama
Nota: 8/10