Quebraram tudo e filmaram. Um ou outro cuidou de esconder o rosto com máscara, alguns atribuíram as ações mais condenáveis ao inimigo infiltrado, mas a maioria parecia orgulhosa, ou inconsequente, em vincular sua identidade ao caos. Fácil analisar que aquelas pessoas entendiam o que estava acontecendo de maneira bastante diferente do que quem assistia assombrado à destruição. Mais que isso, tudo indica que elas se outorgavam um papel muito distinto daquele que efetivamente tiveram ao quebrar cadeiras e arruinar obras de arte; consideravam-se heróis de um épico hollywoodiano que, para boa parte dos brasileiros, desenrolava-se mais como um filme B de terror.
Mas a parte de não esconder o rosto no ato criminoso é o que realmente me interessa aqui. Isso porque não pude deixar de vinculá-la a um outro evento tragicômico que se tornaria célebre na identificação de um viés cognitivo muito comum nos estudos de psicologia social: o efeito Dunning-Kruger.
Em 1995, um assaltante entrou em diferentes bancos do estado norte-americano da Pensilvânia e limpou os cofres. Não usava qualquer tipo de disfarce, nem tentava se esquivar das câmeras de segurança, mas estava curiosamente com o rosto ensopado de suco de limão. Foi preso pouco depois. A surpresa dele com a captura — realmente não esperava ser encontrado — só não foi maior que a dos policiais quando escutaram a explicação para a falta de disfarce: ora, o suco de limão seria capaz de distorcer as imagens das câmeras, impedindo a identificação! Como puderam me encontrar, se usei o suco!
A notícia de tamanha estupidez incentivou David Dunning e Justin Kruger, professores de psicologia social norte-americanos, a empreender uma pesquisa interessantíssima sobre como nós percebemos a nossa própria habilidade. Partiam da premissa de que, se o tal assaltante limonado era tão incapaz de realizar um roubo de banco, talvez também fosse incapaz de perceber o quão incapaz era. Ou seja, seria possível traçar uma relação inversamente proporcional entre capacidade própria e percepção da própria capacidade. Em outras palavras, Dunning e Kruger testaram empiricamente a velha máxima socrática “Só sei que nada sei” e chegaram à conclusão semelhante à do velho grego: quanto menos conhecimento temos, menos compreendemos o tamanho de nossa própria ignorância.
O efeito Dunning-Kruger está relacionado à metaconsciência e à autoavaliação no desempenho de atividades. Ele estabelece que, em geral, todos nós tendemos a superestimar nossa capacidade naquilo que conhecemos pouco e subestimar naquilo que conhecemos muito. Não é, portanto, uma ferramenta teórica criada para analisar movimentos coletivos, comportamento de massa, mitologia social. É claro que não se pode explicar os extremistas apenas por ele. Existe muito mais coisa envolvida. Mas acredito que olhar o fenômeno a partir dele permite algumas inferências interessantes. E nos ajuda a pensar melhor no tamanho do buraco em que coletivamente nos metemos.
Defendo que o que assistimos no domingo, e nos últimos anos, está intimamente relacionado à forma como uma parcela cada vez maior da população brasileira inchou e distorceu a percepção de sua própria capacidade de entender o Brasil. A impressão é que, de repente, pessoas que nunca tiveram interesse em análise social aparecem munidas das mais assertivas conclusões sobre o assunto. Debati sociologia da religião com meu cabeleireiro. Ouvi hipóteses sobre a construção do imaginário coletivo de minha tia aposentada. Fui chamado de comunista por conhecidos de infância. E me flagrei, mais de uma vez, respondendo na mesma moeda, posicionando-me com veemência em campos que pouco entendo. De repente, parece que vivemos numa sociedade em que todos têm posição e opinião sobre os rumos do país. Ora, mas esse é o grande sonho da democracia, não é? Uma sociedade de cidadãos conscientes. Sim, e é também seu maior pesadelo. Isso porque os fundadores da acepção moderna de democracia não podiam considerar o que os estudos sociais só atestariam a partir da própria experiência democrática: a forma como adquirimos consciência social interfere no tipo de consciência adquirida. Não é a mesma coisa ler um livro, ouvir um podcast, assistir um documentário ou ler uma notícia de jornal, ainda que todos tratem do mesmo assunto. O meio também é mensagem, diria Mcluhan.
Dunning e Kruger perceberam um detalhe muito importante ao construírem sua hipótese de trabalho: o efeito estudado ocorria em pessoas com alguma habilidade e naquelas com muita habilidade. Entretanto, ele não era observável em pessoas sem nenhuma habilidade. Ou seja, quem realmente nada sabe costuma ter consciência da própria ignorância e agir conforme essa percepção. O problema começa quando passamos a saber um pouquinho e, incapazes de ver o tamanho real do todo, tendemos a considerar nosso pouquinho como o todo. Talvez o cabeleireiro, minha tia e meus conhecidos de infância não falassem sobre política antes porque acreditavam nada saber, percebiam-se como leigos ou ignorantes. A partir do momento em que entram em contato com alguma pouca informação, por mais fragmentada e desconexa que seja, passam a se sentir dominadores do assunto. Aliás, quanto mais fragmentada e desconexa a informação, melhor, porque permite que eles completem as lacunas com suas próprias conclusões e preconceitos. Adquirem a sensação de que, pronto, já entenderam tudo. E que tolos desses outros, que não entenderam ainda, uma vez que é tão simples! É tudo tão claro!
Existem muitos pesquisadores e pesquisas fascinantes destrinchando como os extremistas recebem as informações com que constroem suas narrativas e ações. Aliás, melhor diria, sobre como nós recebemos informações dentro de um contexto de crise do jornalismo tradicional, ascensão das redes sociais, fake news etc. Gente mais gabaritada que eu tem falado dos efeitos da informação fragmentada, nichada e desconexa, na construção das narrativas sociais — e também sobre como essa fragmentação pode ser usada intencionalmente para defender interesses e promover desinformação. Não chego a nada disso nesse texto. Restrinjo-me à curiosa reflexão sobre aquele ladrão pintado de limão e nossos patriotas pintados de verde e amarelo, ostentando sorrisos abertos enquanto depredam, destroem e defecam sobre os símbolos daquilo que afirmam querer salvar. E quando finalmente presos, atônitos, sem acreditar no resultado lógico de suas ações, exclamam indignados: mas como podem nos prender, nós somos o povo! Somos cidadãos de bem! Assim, parafraseando Dunning e Kruger, concluo: talvez essas pessoas sejam tão incapazes de compreender a realidade social, mas tão incapazes, que se tornaram incapazes de compreender sua própria incapacidade de compreensão.