Estreia da Netflix é um tesouro subestimado, vai despedaçar seu coração e fazer você se afogar em lágrimas Sabrina Lantos / Serendipity Point Films

Estreia da Netflix é um tesouro subestimado, vai despedaçar seu coração e fazer você se afogar em lágrimas

A música nem sempre se tratou apenas de arte, mas também serviu, durante séculos e para muitos povos, como uma ferramenta de memorização e transmissão da história e da cultura para as novas gerações. Por meio de hinos foi e é possível perpetuar não apenas sentimentos, mas conhecimento e informação. Nas comunidades judaicas, sequer é necessário acompanhamento de instrumentos musicais. É comum os cantos a capela, cíclicos e coletivos.

Em “O Cântico dos Nomes”, filme de François Girard, lançado em 2019 e baseado no romance de Norman Lebrecht, publicado em 2002, a música é parte essencial do contexto de tudo que acompanhamos. Ela é toda a sua estrutura óssea e, também, sua musculatura. A história se passa em três linhas temporais. A primeira delas, quando o protagonista, Martin (Tim Roth) é um menino de 9 anos, na década de 1930. Quando é um jovem de 21 anos, já depois da Segunda Guerra Mundial. E, aos 55 anos de idade, quando se tornou um produtor musical de destaque, em 1986.

Apesar de Martin ser o protagonista, quem conduz a narrativa, o filme não gira exatamente em torno dele. Martin nos conta, por meio de suas lembranças, sobre seu irmão adotivo, Dovidl, um menino prodígio no violino, que foi levado para sua casa, em Londres, em 1939, pelo pai, um comerciante judeu que queria tirar o filho da Varsóvia por conta dos nazistas.

À época, os pais de Martin trabalhavam com música e o próprio menino era um estudante de piano. No entanto, sem um talento fora de série para torna-lo uma celebridade, a família aposta tudo que tem no dom inegável de Dovidl. Durante um tempo, a atenção de todos no garoto recém-chegado provoca ciúme e um sentimento de injustiça em Martin. Dovidl não é apenas genial, mas também arrogante e mesquinho. Ele cresce com todos os olhos sobre ele, uma promessa musical. Em seu primeiro concerto internacional, a família investe todos os seus recursos financeiros.

Para desespero geral, Dovidl não aparece para se apresentar, como esperado. Ele some não apenas por aquela noite, mas fica desaparecido ao longo de 35 anos. O pai adotivo morre desgostoso e sem saber o que houve com o filho perdido. Quando em 1986, Martin percebe que um violonista, durante uma audição, tem um ritual idêntico ao de Dovidl antes de tocar, ele fica intrigado e começa a acreditar na possibilidade de o irmão ainda estar vivo.

Conforme investiga, passa por lugares históricos afetados pela guerra, incluindo o Memorial de Treblinka, onde 17 mil rochas de diversas partes do mundo e dispostas em círculos concêntricos homenageiam os judeus mortos em Varsóvia. O filme conduz os espectadores por essa jornada para uma das épocas mais angustiantes e horrorosas da passagem humana na Terra de forma emocionante, sensível e chocante, mas sem precisar usar imagens de judeus desnutridos trabalhando em campos de concentração. Não vemos câmaras de gás e nem trens abarrotados de humanos. Não é necessário. Apenas o que ficou desse passado sórdido é suficiente para comover sem nenhum tipo de sensacionalismo.

Na cena mais bela do filme, Dovidl (Clive Owen) já encontrado pelo irmão, relembra o que houve na fatídica noite de seu desaparecimento. Em uma sinagoga, enquanto buscava informações sobre sua família biológica, escutou um palimpsesto musical entonado pelo rabino e outros homens, que harmonizaram melodicamente os nomes das vítimas de Varsóvia. Transformar em canção foi uma forma encontrada para memorizar os nomes dos mortos pelo Holocausto.

“O Cântico dos Nomes” é um filme que se assiste com os olhos da alma e se escuta com o coração. Não há forma racional de assimilar ou vender essa produção. Compreendendo que o filme não era um produto comerciável, mas uma ode às vítimas, a Elevation Pictures optou não fazer um marketing comum. O resultado nas bilheterias acabou superando expectativas, mas o filme continua sendo para poucos, para aqueles que se recusam em ver o cinema apenas como uma fonte de entretenimento.


Filme: O Cântico dos Nomes
Direção: François Girard
Ano: 2019
Gênero: Drama
Nota: 10/10