O homem passa a vida defendendo-se de seus próprios impulsos, abafando a vontade de rebelar-se contra toda a insana fantasia que o cerca, socorrendo-se na arte para não ter de valer-se da medicina, e dessa forma refinando o propósito de se aperfeiçoar, de fazer da permanência no mundo um tempo menos atribulado e mais aprazível. As mais profundas complexidades do existir cercam-se dos problemas de que nunca mais nos livramos, os mesmos que, de tão prosaicos, acompanham-nos da promissora aurora ao crepúsculo, que lírico em suas cores de morte, assalta-nos o espírito com maior ou menor força todo santo dia. A vida só quer de nós aquilo que quase nunca conseguimos dar, imaginando em sua grandeza que somos assim também superiores, capazes de contemplar o horizonte do descompasso e de hediondez com as lentes da indiferença. As almas amorfas de homens desde há muito órfãos são gratas à pusilanimidade triste de cada dia, reduto de vulgares pretextos para justificar o passado que nunca passa e alonga-se para muito além de nossa limitada tolerância.
Benny Boom toca, a seu modo, o desajuste fundamental do homem para com a vida, a conjuntura em que se insere, os outros homens. Fiel à máxima latina que prega castigar os costumes com o humor — e, mais ainda, com o riso desbragado, solto —, o diretor foge da lógica da repressão e investe num mote absurdo para subverter o quanto possível a dureza de situações em que muitos se encalacram, também pela preferência bastante aceitável de se recolher e tentar encontrar a solução para um drama que inferniza grande parcela da humanidade. Transformando sofrimento em leveza, Boom faz justiça ao apelido que o consagrou tanto em besteiróis fáceis como esse como em “All Eyez on Me” (2017), sua leitura da vida do rapper americano Tupac Shakur (1971-1996). Em “Cadê a Minha Entrega?”, já se vê muito da verve explosiva com que elabora problemas que alcançam todos os estratos da sociedade ao redor de todo o globo, malgrado o faça da maneira mais banal, até repleta de uma saborosa displicência, que consegue.
Observa-se no roteiro de Blair Cobbs a intenção de proporcionar a cada ator seu momento próprio de destaque, e Boom tem esse condão, ainda que misture as várias subtramas num mesmo todo, a fim de chegar ao coração da história. Donald Faison lidera um elenco de subcelebridades de Hollywood na pele de Leo, o responsável pelas entregas mais espinhosas de que qualquer profissional da categoria pode ser incumbido. Naturalmente, é preciso uma carga reforçada de licença poética e mesmo de boa-vontade da parte do espectador para que se absorva melhor o nonsense do enredo, que orbita em volta do despacho de uma certa mercadoria, valiosa, mas indesejada. Sempre chapado, Leo comete o equívoco que o irá perseguir no decorrer dos esquálidos 84 minutos de projeção, podendo contar cada vez menos com a leniência e a tolerância da chefe, de Debbie Allen, que não por acaso também é sua mãe. Todos os lances mais hilários de “Cadê a Minha Entrega?” passam pela figura acolhedora e exuberante de Allen, de quem igualmente emana o pouco calor num filme-pipoca dos mais desavergonhadamente comerciais de todos os tempos. Mas engraçado, sem dúvida.
Os tipos improváveis do filme de Boom, com esse entregador a um passeio curto da delinquência, onde transita não sem algum medo, deixa a mensagem, batida, de que o crime não compensa e dá trabalho. Ser malandro não é para qualquer um.
Filme: Cadê a Minha Entrega?
Direção: Benny Boom
Ano: 2009
Gêneros: Crime/Ação/Comédia/Aventura
Nota: 8/10