Para quem gostou de Narcos: filme impiedoso com Penélope Cruz e Javier Bardem está na Netflix e você não assistiu Divulgação / Universal Pictures

Para quem gostou de Narcos: filme impiedoso com Penélope Cruz e Javier Bardem está na Netflix e você não assistiu

O fogo do desejo que consome-nos a todos varia de intensidade à medida que vamos nos conhecendo e chegamos à salvadora conclusão de que, não, não há mal algum em admitir, nem que seja apenas para si mesmo, no isolamento de um quarto e sem janelas, que não somos naturalmente afetos à civilidade. Desejamos o que nos parece inestimavelmente distante porque sabemos que as chances de o alcançar são mínimas; acatando o mesmo mecanismo, sufocamos aspirações assustadoramente próximas porque elas não se nos mostram instigantes o suficiente, não nos encantam, não conseguem, enfim, cavar um espaço num cérebro tomado por pensamentos os mais absurdos, rendido pela tirania da ilusão, subjugado pelo desvario mais eloquente, que não se contenta em mostrar-se senhor das humanas vontades e dos desejos mais comezinhos e pulsa e grita e queima, fazendo sofrer aquele que ousa enfrentar seus próprios medos e as neuroses que deles eclodem, como se fossem as larvas de um inseto asqueroso e peçonhento, que não mede esforços para tomar conta de um jardim, seu mundo possível. O homem não sabe querer; no momento mesmo em que manifesta uma vontade qualquer, a natureza humana já principia a semear destruição por toda parte, evidência que nos leva a concluir uma vez mais: há que se declinar de todo desejo, mormente os que não se furtam a iludir-nos com vãs promessas de felicidade, que, supomos, irão nos conduzir a uma vida melhor — ou, quiçá, menos ordinária.

Ninguém está a salvo de tornar-se um criado eterno das próprias vontades, principalmente nos momentos em que tudo quanto resta é só a felicidade que já não existe mais. Ao longo de toda a vida, cerca-nos o perigo de que passemos ao melancólico estado de arqueólogos de nossa própria vida, cascavilhando nossas miudezas em busca de qualquer coisa que nos faça supor que uma época boa, mas já sepulta há muito, pode reviver por si só ou, contrariando ainda mais a razão, ter uma certeza tão renitente quanto detestável de que seremos nós que vamos tomar um trem mágico para todas as gares das recordações e lá permaneceremos o quanto desejarmos, voltando depois como se nada tivesse havido. Pobre do homem (e da mulher) que não se submete ao jugo do tempo; e tanto mais infeliz é o que se presta a ser seu carrasco, tentando impingir-lhe a pena que só a ele mesmo cabe pagar.

Virginia Vallejo atravessou as labaredas de seus apetites mais baixos e saiu inteira — ainda que bastante chamuscada — para contar o que viveu. Em 2007, a jornalista colombiana, tida como uma das personalidades mais influentes de seu país, além de uma das mulheres mais cobiçadas do mundo, publicou “Amando Pablo, Odiando Escobar”, em que narra a grande e a mais imprudente aventura de sua vida, o romance com o sujeito mais bem-sucedido do mundo até então (talvez ainda o seja, segundo determinados critérios), capaz de ganhar dois bilhões de dólares americanos em pouco mais de cinco anos. Pablo Emilio Escobar Gaviria (1949-1993) conseguiu multiplicar essa fortuna inicial por quinze, e ao morrer, um dia depois de completar 44 anos, em 2 de dezembro de 1993, contava então 30 bilhões de dólares — equalizada a sanguinária inflação do período, no Brasil, a cifra alcança a casa do trilhão. Foi por esse homem que Vallejo se apaixonara.

Jeff e Michael Zimbalist e o diretor Fernando León de Aranoa desviam com galhardia da casca de banana jogada pela ex-amante mais famosa do submundo entre os anos 1980 e 1990 e em “Escobar – A Traição” unem Pablo a Escobar, até o fim trágico, no telhado do hotel em que se escondia da DEA, a agência antidrogas americana. Aranoa e os Zimbalist aproveitam muito da narrativa emocionante e emocionada de Vallejo, mas sabiamente recusam o papel de vítima em que a jornalista se coloca. As passagens em que os dois travam um primeiro contato, numa festa oferecida por Escobar a ela, estão sabiamente dispostas na virada do primeiro para o segundo ato, quando o público decerto já aguardava por alguma reviravolta que o fizesse permanecer diante da tela por mais hora e meia. A colaboração de Vallejo às autoridades dos Estados Unidos foi de fato determinante para a tentativa de prisão de Escobar e sua consequente eliminação, na esteira de um tiroteio que as limitações do quarto em que se homiziava tornam ainda mais angustiantes; contudo, isso só acontece depois que a então âncora de um dos programas mais populares da Colômbia naqueles jurássicos anos 1980, de televisão de tubo e programação com horários draconianos, nota que enfiara a mão numa cumbuca estreita demais. Fica no ar sua ingenuidade quanto a ser a nova rainha consorte da cocaína, mas Escobar era um homem conservador demais para desposar uma estrela da tevê, pouco mais que uma prostituta para seu machismo e sua hipocrisia abjetos.

É sempre deleitoso ver marido e mulher se digladiando na ficção. Penélope Cruz, oscilando entre a classe e a vulgaridade natural de Vallejo, é um achado ao conferir humanidade a um tipo tão controverso; entretanto há que se tirar o chapéu para Javier Bardem, o galã latino do cinema contemporâneo por excelência, dando vida a um Escobar obeso. Bardem, vinte ou trinta quilos a mais do nos costumamos a vê-lo, ostenta aquela barriga (e exibe outras partes de sua anatomia tão feias quanto ela) valendo-se da máscara do personagem, mas visivelmente orgulhoso de seu trabalho. E com toda a razão.


Filme: Escobar — A Traição
Direção: Fernando León de Aranoa
Ano: 2017
Gêneros: Drama/Biografia
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.