Fique calmo, respire fundo e leia logo a droga dessa história. Quando eu escrevi essa patacoada nas minhas redes sociais, acusaram-me de ser um homem antissocial e quase me fizeram circuncisão com uma faca enferrujada. Eu tinha tudo para escapar do tétano, sem esmegma e sem ressentimentos. Todos, literalmente todos, exceto os críticos em literatura, sabiam que eu era um escritor talentoso em Assunção, no Paraguai, ou melhor, em ascensão, no Brasil. Uma legião de antigos fãs — meia dúzia deles, aproximadamente, excetuando-se a minha progenitora — foram às ruas do país protestar contra a blasfêmia. Já estavam devidamente enfezados, repletos de fezes na cabeça, treinados em botar a boca no trombone. Os que ainda permaneciam vivos tinham feito similar protesto em meados dos anos 1960, quando John Lennon soltou a pérola de que os Beatles eram mais conhecidos do que Jesus Cristo. Deu no que deu.
Dá para ter um pouco mais de paciência comigo e continuar a leitura? Pois é. No meu caso em particular, interditaram uma rua sem saída, improvisando uma enorme barricada de pneus-de-barriga e de saídas-de-banho. Daí, empilharam os meus livros — eram poucos, eu admito —, tacaram sangue do cordeiro — afinal, a gasolina andava custando os olhos da cara — e incendiaram os exemplares numa fogueirinha que mal dava para assar um marshmallow, quem dirá, para encomendar a minha alma ao diabo.
O diabo sabia que eu estava apenas brincando. Na verdade, mentira seja dita, eu tinha feito aquela comparação esdrúxula apenas para chocar a audiência, para viralizar conteúdo na WEB e incrementar a venda dos meus livros com edições esgotadas — ninguém suportava mais ler um parágrafo sequer de minha autoria, nem mesmo os cegos do castelo de quem eu me despeço e vou, a pé, até encontrar um caminho, o lugar pro que eu sou.
Não gosto de Nando Reis. Nem sei por que o plagiei nesse exato instante. Flato é que não tinha fogueira nenhuma nesse mundo-de-meu-deus que fizesse um ser humano comprar um livro da minha autoria, muito menos, lê-lo. Acabei perdendo tempo, amigos e sexo sem fins reprodutivos, o que não deixava de ter lá as suas vantagens, já que o cancro havia recrudescido. Não doeu nada, mas, devia ter doído. Quanto a ser mandado para os quintos dos infernos, eu não me opunha, desde que houvesse música dos Beatles tocando, futebol rolando e a Scarlett Johansson me amando sobre as brancas nuvens das plagas paradisíacas.
Pare de tomar a pílula. Pare de caçoar de mim. Tenho certeza de que eu vou para o céu. Bobagem mesmo é querer mudar o mundo lendo fake news nos grupos de Whatsapp. Não suporto mais os tios e as tias com suas notícias bombásticas. À bem da mentira, não faço ideia se Pelé, recentemente falecido no corpo de Edson Arantes do Nascimento, seria mesmo uma celebridade mais popular do que o filho do Criador. O preto genial da camisa 10, sem sombra de dúvidas, foi um craque memorável. Mas, bom de bola mesmo era o Brasilmar. Esse, eu não apenas vi jogar, como batemos uma bola juntos.
Brasilmar tinha 11 anos de idade e uma perna bem mais curta do que a outra, em decorrência de sequelas da poliomielite que ainda matava e mutilava crianças nos rincões brasileiros. Por razões óbvias, Brasilmar não era um jogador de linha. Ele pegava no gol do time de futebol de salão da minha sala, no Colégio Marista, que a gente adorava chamar de Colégio Nazista, por puro despeito, por pura indisciplina e por puta preguiça de estudar. Toda rebeldia tinha o seu preço.
Eu tinha enorme apreço pelo Brasilmar. E como ele catava bem. O moleque fechava o gol, operando verdadeiros milagres. Se fosse para comparar algum ser humano com Jesus Cristo, certamente, eu escolheria Brasilmar, o meu colega do ensino fundamental. Fundamentalmente, embaixo das traves, Brasilmar era o cão-chupando-manga. Apesar das limitações físicas que, em princípio, engavam os adversários, que se sentiam mais confiantes, ele tinha uma potente bicuda com a perna direita, que era a perna boa. Ah, se aquele Kichute falasse… Penso que Brasilmar superaria fácil a marca de mil duzentos e oitenta e três gols feitos por Pelé. A gente matava aulas à beça para jogar bola, um verdadeiro escândalo.
Para a tristeza do futebol amador, certo dia, adveio uma tragédia. Brasilmar foi atropelado por um boi sem coração, ou melhor, por um motorista sem coração, na travessa da Rua da Amargura, em Goiânia, Goiás, terra dos homens viris e das mulheres bonitas. Brasilmar não se lamentava pela doença adquirida e tinha o hábito de voltar a pé para casa. Durante o trajeto, ao atravessar uma movimentada avenida nas imediações do colégio, gostava de fazer troça de si mesmo e de divertir as outras crianças, exacerbando a sua condição física precária, apoiando a mão esquerda sobre a coxa esquerda, jogando o bumbum para trás e encurvando o corpanzil para frente. Então, acenava freneticamente com a outra mão, para que os automóveis parassem enquanto ele concluía a travessura, ou melhor, enquanto ele concluía a travessia da rua. Uma vez postado na calçada, virava-se para os motoristas, fazia uma banana com o braço e matava a molecada de rir.
As palhaçadas do Brasilmar funcionaram bem durante algumas semanas. Pode ser que o meu amigo tenha sido atingido por um motorista que já fora vítima das suas traquinagens, situação que explicava, mas, não justificava a maldade. O time da quinta série perdeu um goleiro fora de série. O colégio decretou três dias de luto, contudo, para a revolta geral dos alunos sobreviventes, manteve as malditas provas trimestrais para a próxima segunda-feira. Não era à toa que a gente odiava o diretor.
Edson Arantes, não. Edson Arantes já tinha morrido, fazia muito tempo, ainda que o coração continuasse a bater dentro do seu velho peito, encantado pela aura e pela magia de Pelé, o preto mais querido e mais bem sucedido do Brasil — o que não deixava de ser um milagre, em se tratando de um país atrasado, injusto, desigual e racista.
Com toda a categoria que Deus me deu para abrir a matraca, sou capaz de afiançar que Pelé, de fato, foi o maior jogador de futebol de todos os tempos, depois do Brasilmar. Que Deus os tenha, escalados, no seu time celestial. Vai ser vitória na certa.