Entre o real e o alegórico, filme na Netflix revira os intestinos da máfia

Entre o real e o alegórico, filme na Netflix revira os intestinos da máfia

Se viver já parece com uma aventura sem que tenhamos de fazer nada, esse aspecto meio farsesco, até onírico, da vida recrudesce nos momentos em que somos confrontados — primeiro por nós mesmos; não muito depois por quem quer que nos rodeie — acerca do que entendemos como virtude ou vício. Ninguém tolera ser obrigado a admitir fracassos de qualquer ordem, mal-estar cujo controle pode ser bem-sucedido mirando-se as vantagens futuras de um recuo temporário. Se o homem pudesse ser cristalizado numa imagem, esta seria a de uma coroa, símbolo máximo do poder em sua constituição mais tirânica, emulação imediata da superioridade divina frente à ignorância, à prepotência e ao consequente escombro moral dos homens. Pelo desejo de uma autoridade torta, despropositada, imerecida, indivíduos de todas as origens, sangues, culturas e estratos sociais matam-se uns aos outros, perpetuando a maldição do pecado original. O homem é mesmo o animal mais trágico da Criação — e o que se sente mais cômodo nesse melancólico papel.

Saber-se miserável em meio à natureza, pantagruélica e caótica, a seus pares e a si próprio de nada vale ao gênero humano, condenado a repisar velhas práticas e desenterrar os arcaicíssimos costumes que o matam, mas não sem antes submetê-lo a todas as sevícias que a crueldade do homem mesma é capaz de inventar. Não obstante nossos planos de dominação fazerem água e irem ao encontro da insensatez da vida com toda a violência, continuamos impassíveis no desprezo aos sinais, avançando contra a lógica, aplaudindo despautérios, achando graça da falta de sentido, mas nos surpreendendo com as consequências, sempre eivadas do horror mais monstruoso. Com “Como Virei Gângster”, o polonês Maciej Kawulski inicia uma espécie de registro da história informal de seu país, entorpecido pela roda viva de corrupção, degenerescência de princípios e a ubiquidade de expedientes incorporados pelo estado paralelo que sói instalar-se em todos os rincões do planeta em circunstâncias assim, do proxenetismo ao narcotráfico, passando pela lavagem de dinheiro e pela sonegação tributária. Kawulski enfronha-se na arqueologia social da Polônia contemporânea de modo a escancarar a ruína das instituições quando da debacle do comunismo na União Soviética, a partir do final dos anos 1980, apenas oficializada em 26 de dezembro de 1991.

Essa paródia da jornada de uma Polônia pós-moderna congelada no tempo ao cabo de 74 anos, em se considerando a tomada do poder imperial na Rússia czarista pelos bolcheviques, com a Revolução de 1917 — ou 93, se entrar na conta a fundação do Partido Comunista soviético, por Lênin —, ganha corpo com o personagem de Marcin Kowalczyk, essencialmente dostoievskiano em sua natureza lastimável, a ponto de nunca lhe conhecermos o nome. Kowalczyk, o gângster do título, cresce num lar católico numa época que regula com a da assunção de Karol Józef Wojtyła (1920-2005) ao trono de Pedro, o que deveria interferir na condução que escolhe dar a sua vida. Na introdução, o roteiro de Krzysztof Gureczny é competente em explorar essas pílulas da vida doméstica do protagonista, confrontando-as com o destino patologicamente imediatista que almeja. A dada altura, o espectador nota que esse mafioso convicto, mas algo involuntário, perde-se nos próprios desejos, confirmando o niilismo do alemão Schopenhauer ou a teoria da liquefação das relações humanas e do próprio homem, do patrício Zygmunt Bauman (1925-2017).

O cinismo de Kawulski sobre a fratura sociopolítica da Polônia continua em “Como Me Apaixonei Por um Gângster” (2022), no qual amplia sua análise a respeito da interferência de governos e desgovernos, de direita e de esquerda, em sua pátria. A força da mensagem, contudo, transcende fronteiras e se constitui um aviso perene e sempre cheio de urgência acerca do amor incondicional, de uma mulher por um criminoso ou de delinquentes de todos os coturnos pelo poder.


Filme: Como Virei Gângster
Direção: Maciej Kawulski
Ano
: 2019
Gêneros
: Drama/Suspense
Nota
: 7/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.