Ao contrário do que se deu comigo em relação ao ficcionista Guimarães Rosa, o escritor Machado de Assis arrebatou-me vagarosamente, como quem se embriaga de um bom vinho tinto, cálice por cálice, até degustar do cerne da matéria-prima da videira, a se instaurar por uma experiência de envelhecimento em barril de carvalho do tempo da vida. tornei-me leitor deste genial criador do “Dom Casmurro”, que, no romance, à primeira vista, há de ser lido, sobretudo, por sua magnífica imperfeição, do que pelo domínio pleno do discurso narrativo intrínseco ao gênero literário, como os seus mentores intelectuais, Flaubert, Stendhal e Eça de Queiroz, a exemplo. Curiosamente, enquanto se ateve à influência e égide do mestre naturalista português, com a publicação das primeiras obras em prosa de ficção “Ressurreição” (1872), “A Mão e a Luva” (1874), “Helena” (1876) e “Iaiá Garcia” (1878), se bem que seja a fase realista e não romântica como atestara José Veríssimo, o excepcional Machado de Assis não conseguiu sequer superar o “chefe de nossa literatura”, consoante Joaquim Nabuco alcunhara José de Alencar, autor de “Lucíola” (1862) e “Senhora” (1875).
Destarte, é fato que o genial Machado de Assis só iria se transformar no maior escritor brasileiro de todos os tempos, quando, publicara a sua obra-prima “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, em 1881. Não obstante, para evitar os piparotes do defunto-autor, neste roteiro de leitura aconselha-se que se inicie a experiência machadiana por dois de seus mais brilhantes e menos afamados registros literários: “A Igreja do Diabo” e “A Causa Secreta”, este último à Allan Poe, que se situam às margens dos contos consagrados “A Cartomante” e “Missa do Galo”. Após cumprir o rito de iniciação, o Leitor-aprendiz estará apto a enfrentar outras narrativas de menor fôlego do autor, sem ordem cronológica de publicação, tais como: “Miss Dollar”, da primeira fase que demarca a obsessão machadiana por viúvas, hábito que, posteriormente, desaguará em seu mais inspirado discípulo Nelson Rodrigues — sugiro a leitura comparativa das “Memórias Póstumas” e com o discurso dramatúrgico de “Vestido de Noiva”. O diálogo “Teoria do Medalhão”, que deve ser lido em analogia ao metafórico “O Homem que Sabia Javanês”, de Lima Barreto. A partir do processo de aprendizagem a respeito das abordagens psicológicas do espírito humano — lembre-se de que Eça dizia que o realismo era a anatomia do caráter —, o Leitor se habilitará a enfrentar os admiráveis registros “O Espelho”, “Um Esqueleto” e “O Enfermeiro”. Cumprido o rito de passagem, o Leitor estará apto a enfrentar a magnífica novela “O Alienista”, que ironiza o cientificismo epocal.
Ao conhecer a fabulosa história de Simão Bacamarte e a sua Casa Verde, creio que já podemos adentrar a mais genuína criação do autor, considerada o divisor de águas da prosa de ficção pátria, pois a literatura nacional pode ser dividida em antes e depois das “Memórias Póstumas de Brás Cubas”… É impressionante como o extraordinário livro irá desestabilizar, a proposição de verossimilhança e linearidade do movimento no âmago do Realismo/Naturalismo. Em paralelo com as reminiscências de Brás Cubas, sugiro que se coteje com “A Relíquia” (1887), como constatação de que o estilo machadiano no momento subsequente influenciará Eça de Queiroz. Feita a conferição entre o mestre lusitano e o sábio-feiticeiro fluminense, enfim indica-se a leitura crítica de “Dom Casmurro”, mesmo antes de “Quincas Borba” (1891). A meu ver, os livros de ficção “Isaú e Jacó” (1904) e “Memorial de Aires” (1908), sem medo de equivocar-me, são obras menores, subscritas no bojo da decadência (e lassidão) do estilo magistral cultuado pelo Bruxo do Cosme Velho.
Por fim, em “Dom Casmurro”, romance de fim de século, deparamo-nos com a fórmula mais básica de um enredo: dois companheiros de futuro ofício (o sacerdócio), Bento Santiago e Escobar, e uma atraente dama casadoira, Maria Capitolina. Subjugada a resistência materna com o argumento da ausência de vocação sacerdotal, Bentinho matrimoniar-se-á com Capitu; e, no velório do exímio praticante de natação, o afogado Escobar, flagrará a até então devotada esposa a desfiar um rosário de lágrimas em silêncio, diante do cadáver do antigo seminarista. O episódio torna-se a justificativa mais plausível para a desconfiança do suposto marido traído; todavia, ao contrário das heroínas desde a Senhora de Rênal, Emma Bovary, até Ana Karenina, de Tolstói e Luísa de “O Primo Basílio”, ao contrário da habitual comprovação narrativa sobre a deslealdade feminina, magistralmente, instaura-se a dúvida de adultério.
Afinal, Capitu traiu ou não Bentinho, que, conforme bem observou a crítica de literatura Hellen Caldwell, houvera de ser Otelo e Iago de si mesmo, detectando que o personagem-narrador de “Dom Casmurro” carrega consigo a nomenclatura do maior vilão já concebido pela pena literária, Bento Santiago?