Obra-prima, com a melhor performance da carreira de Brad Pitt, chegou à Netflix e vai te hipnotizar por 124 minutos Francois Duhamel / 20th Century Studios

Obra-prima, com a melhor performance da carreira de Brad Pitt, chegou à Netflix e vai te hipnotizar por 124 minutos

A vida é um misterioso paradoxo, cheio das reviravoltas todas que garantem um percurso ora acidentado, ora menos turbulento, esvaziado das perturbações capazes de tirar do leito o navegante mais zeloso. Malgrado a aflição imanente por obter algum destaque e se elevar sobre a tacanhice e à valorização doentia do excepcional, do inimaginável, do fabuloso, todos queremos ter a vida o mais normal, o mais comum, até o mais previsível quanto se puder, e uma vez que chega-se a esse paraíso, em que as ilusões restam devidamente sepultadas, as neuroses evolam-se como o perfume das rosas no primeiro raio de sol e as mágoas, derradeiro refúgio da tristeza, somem como se cansadas de não mais doer, e reflora a esperança da felicidade possível, condição pela qual tanto se luta, mas sói escapar-nos por entre os dedos, como se, no fundo, algum detalhe nefasto indicasse que não a merecemos. Enquanto não se impõe esse tempo mágico, a vida — ou o que sobra dela — erode-se por si só, num movimento que toma corpo sem que nada mais se possa fazer além de cada qual assumir seu luto e suas lutas, lançar-se novamente à aventura do existir por outras sendas e tentar finalmente atingir a glória, grande ou pequena, que não se para nunca de buscar, malgrado a paralisia avassaladora da desdita.

Conquistar o mundo implica renúncias. Busca-se desesperadamente por alguma beleza capaz de justificar o sofrimento todo que é a vida, mas nem sempre se entende que a vida transforma em beleza muito do que enxergamos como outra coisa qualquer. Mesmo o ridículo, o patético, o dramático da vida tem tanta beleza quanto o romance mais tolamente sereno, com a ressalva de que romance serenos podem nunca nos fazer ter o gosto do devaneio que aparta as nossas das vidas das demais criaturas. Heróis padecem de males que homens que nunca hão de se elevar para além do chão da mais pedestre humanidade, e nem sempre estão dispostos a escalar a muralha de desafios que pretensamente os separa dos prosaicos mortais cá embaixo — quando não são acometidos de uma indolência, de um fastio moral que os equipara ainda mais a todo resto. James Gray enumera metáforas de intensidades variadas para penetrar o espírito de um homem atormentado por dúvidas e cobranças pelas quais não têm responsabilidade, mas que são parte indissociável de sua vida. Muito do vigor de “Ad Astra – Rumo às Estrelas” se deve ao congraçamento de um texto preciso — mas com as devidas margens para a reflexão do público — com a performance não menos arguta de um ator mais intuitivo que técnico, mas sempre dedicado.

Gray e Ethan Gross assinam um roteiro que deixa Brad Pitt à vontade para voar alto sobre uma figura humana rica de perspectivas. A diferença de Mark Watney, o viajante do espaço de Matt Damon em “Perdido em Marte” (2015), de Ridley Scott, o major Roy McBride sabe exatamente onde pisa — ao menos quando se trata de missões em recantos perdidos na galáxia. Pitt alterna-se entre a maldição de Roy, exposta de maneira quase didática, e sua face menos sombria, com invejável desenvoltura. No momento em que a história parecia enveredar por juízos de valor que decerto colocariam tudo a perder, o diretor retoma o leme com firmeza, deixando claro que seu mocinho é, fundamentalmente, um homem que sofre, violentando sua natureza no empenho de resolver um trauma do passado com o pai, Clifford, de Tommy Lee Jones, astronauta como ele, e desertor de um tal Projeto Lima, que resultou nas sevícias e na morte de uma tripulação inteira. Nesse momento, Jones brilha na pele de um velho guerreiro que não se cansa de combater moinhos de vento, tal um Dom Quixote das estrelas.

Alegoria sobre as relações malogradas entre um pai e um filho que se amaram um dia — por mais que o primeiro se delicie em negá-lo —, “Ad Astra — Rumo às Estrelas” é muito mais o retrato de um homem à procura de si mesmo, do que pensar sobre sua própria vida, à cata de sua dignidade. A fotografia mesmerizante de Hoyte van Hoytema só nos ajuda a emoldurar melhor essa paisagem.


Filme: Ad Astra — Rumo às Estrelas
Direção: James Gray
Ano: 2019
Gêneros: Ficção científica/Thriller/Drama
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.