E se o amor for uma grande invenção, cujo roteiro, personagem e trama tivessem sido antecipadamente preparados, escritos e dirigidos por nós?
O amor não é genuíno, ninguém nasce amando ninguém, o amor é uma construção humana. Apreendemos a noção/ideia e possibilidades do amor através das relações que estabelecemos e, fundamentalmente, através do modo como as relações inicialmente nos são ofertadas e afetadas desde a mais tenra infância. Construímos o amor fundador na relação com os pais, sendo primordialmente amados por alguém, vistos e atravessados pelo olhar que o outro nos confere no início da vida e no percurso sequente dela. Além disso, construímos a noção de amor vendo o outro amar a um terceiro, observando como o amor se dá nas relações ao nosso redor. Captamos as cenas em que o pai bem trata ou maltrata a mãe, a tia ao tio, o avô à avó, a fulana ao beltrano e assim vai.
Depois de abastecidos do que quer que nos tenham oferecido, seguimos repetindo o olhar conferido ao amor, aplicando-o nas nossas relações. É como se juntássemos tudo isso numa enorme fita de filme, em um rolo de registros emaranhados e, a partir daí, as cenas vão se sucedendo em uma reprodução nem tão autêntica assim. À medida que outras histórias de amor são vivenciadas, essas atualizam a passada, trazendo à tona diversos aspectos, a começar pela escolha do protagonista: o ser amado.
Nosso primeiro filme de amor começa na puberdade/adolescência. É tempo de preparar as pipocas, brigadeiros, estocar nutella e, é claro, os lencinhos. Ahhh!! Esses amores são em sua maioria um grande drama, cheio de platonismos e sofreguidão. Nessa época acreditamos fazer nossas primeiras “escolhas” de amor. Mas estejam certos de uma coisa: não amamos alguém por acaso, escolhemos inconscientemente amar alguém por diversas razões, ou melhor, por diversas não razões. São resquícios de uma película antiga, repetida, que buscamos atualizar no tempo presente. Tudo isso fazemos escondidos de nós mesmos, muitas vezes sem sequer nos darmos conta disso. É desse mesmo lugar inconsciente que advém reproduções tão poderosas, as quais nos fazem interessar por alguém, tão somente pela covinha que o sujeito carrega no canto esquerdo, ao lado da boca. Somos fisgados na conquista inicial por detalhes: o modo como gesticula, sorri, passa a mão no cabelo, se movimenta. Somos capturados por uma química muito particular que acontece em alguns poucos encontros, esses que, na verdade, revelam-se um reencontro. Freud relata o caso de um paciente que se interessava por mulheres que tinham um certo brilho no nariz — verificado em análise mais profunda, tratava-se do mesmo brilho do nariz de sua mãe. As histórias se repetem, mesmo sem a nossa aparente percepção.
Mais adiante somos fisgados também pelo caráter do outro, somos apreendidos pelo modo como nos olha, nos trata, porém isso não significa que todos nós seremos detidos sempre pelo bom. Nem todos somos pegos pelo sujeito bom caráter, o que nos trata bem, nem sempre o interesse vem do amor cortês. Para alguns, o vilão se encaixa melhor na trama. É que o filme é repetido e esta é a “deixa” para escolher alguém e topar permitir o amor chegar. É justamente nessa hora que, para alguns casos, o bom sujeito não se encaixa, já que o amor ganhou rachaduras demais em sua construção para manter-se firme e com alguma sensatez que possam permitir ligar o sinal vermelho de alerta.
Mas e quanto aos amores escolhidos, sem aparentemente ter relação com o amor fundador? Pode-se também buscar um amor oposto ao modelo apreendido. Mas, qualquer que seja o caminho — similar ou da oposição — há um só endereço remetente. Mesmo sendo opositor, ele diz respeito ao modelo inicial, é antagônico àquela base e não a um modelo qualquer, disperso e aleatório. Trata-se de um cerne bastante preciso e é dessa fonte que retiramos a matéria-prima para acreditar que estamos amando alguém. Esses processos tão finos estão fora da nossa consciência, não há ideia clara da ligação entre as figuras, entre esses momentos. Mas podemos perceber, conscientemente, as sensações que essa junção provoca e se ela nos aproxima do bem-estar ou não.
Se o amor tal como entendemos é uma construção que remete à ideia de um filme já assistido, o que amamos no outro talvez não seja o que ele é, mas o que queremos que ele seja. Desejamos o outro pela ilusão que nos provoca, assim acreditamos estar amando. Entender tudo isso não significa um aprisionamento inexorável, intransponível para a ordem do sempre. Sendo essa a sentença, seria terrificante imaginar que uma falha no percurso da construção do amor — quebra grave de confiança, violência, por exemplo — nos condenaria para sempre a um final repetidamente infeliz.
A Psicanálise ensina que não há como nos curarmos de nós mesmos, mas podemos nos reconciliar com nossa própria história. E essa reconciliação acontece à medida que tomamos consciência das “escolhas” repetidamente equivocadas e tão prejudiciais à nossa felicidade. Ao nos defrontarmos com essa percepção reprodutiva e infeliz, não faz mais sentido o discurso alienado do acaso, como: “eu tenho dedo podre para o amor”, ou “não tenho sorte nas minhas relações”. Perceber que as situações de amor no presente nada têm a ver com o acaso, oferece-nos a possibilidade de reeditar o amor e permitir nosso reposicionamento diante da vida. Saber sobre nós mesmos nos tira da posição aparentemente vitimizada da reprodução inconsciente. É libertador.
Em algum momento de nosso filme, talvez seja preciso reeditar o amor. Podemos reajustar o foco, trocar personagens e cenários, caprichar no enquadre das cenas mais lindas ou dar um zoom no melhor ângulo até obtermos a certeza de que a luz escolhida valorizará ainda mais nossa imperdível obra cinematográfica. Aí é só apertar o play, a direção desse filme sempre será nossa, jamais duvidem disso.