À medida que nos admitimos donos de fraquezas as mais inexpugnáveis, concentradas em espíritos débeis, tanto mais que a carne, vulneráveis aos pesares tão íntimos de cada um, desajustes sociais, tragédias que aniquilam o que há por fora e por dentro, a indefectível tristeza que margeia e conduz a vida do homem do berço ao túmulo, a uma vasta gama de intempéries, enfim, as metafóricas e aquelas que nunca se pejam de logo subjugar o homem pela força de seus efeitos na vida como ela é, vamos compreendendo, ao tempo e no ritmo que só nós mesmos somos capazes de definir, que o existir, malgrado tão duro muitas vezes, é um grande, um soberbo presente com que nos regala o Altíssimo, o destino, a sorte, ou seja lá que nome se queira dar a essas manifestações, ocultas e tão evidentes, que se fazem perceber a todo instante na jornada do homem neste plano. Só mesmo uma entidade superior, desinteressada das tergiversações morais do gênero humano, concede-lhe a oportunidade de abandonar o caminho pelo qual íamos gostosamente nos perdendo e refazer o percurso, do começo, se necessário, uma vez, duas, cinquenta, mil. Toda graça nasce do amor, e todo amor, por seu turno só pode vir da renúncia, ocasião em que precisamos largar tudo, abandonar os arcaicíssimos hábitos que, de tão arraigados, já nos compõem e nos explicam, e acessar o mais obscuro de nosso espírito, no intuito de apreender o cenário em que estamos nos aprisionando e, assim, verdadeiramente, mudar. A estrada para a perdição é larga, porém sombria; uma vez que o homem envereda por essa senda tenebrosa da existência, surgem mil outros desvios que, por mais retos que possam se mostrar, conduzem-no apenas à desventura e não raro à morte.
O filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), um dos pensadores mais completos — e complexos — da história, defendia a necessidade do recomeço como uma das questões centrais da vida. O pensamento de Heidegger assinala as muitas descobertas que fazemos ao longo do estar no mundo, cornucópia de mistérios cuja solução é meramente ilusória. A obra de Heidegger — ele mesmo um sujeito que promovia a dúvida ao nobre estado de mãe do pensamento filosófico, parindo muito mais incerteza que a vã segurança que ilude o homem desde sempre — passa por eminentemente melancólica, desesperançada, lúgubre, por dizer as verdades revigorantes que quase ninguém aprecia ouvir, comportamento que se pode acolher em alguma proporção. A vida terrena, curta e rodeada por morte a despeito de pouca idade e boa saúde, m desperta-nos uma irrequietude danosa, fruto do imediatismo diante do tempo, o maior de nossos carrascos. A existência humana para Heidegger é um eterno vir a ser, no qual nada é imediato, tampouco definitivo, e a natureza do homem tem de vigiar sempre, a fim de não se comprometer com os projetos errados, uma vez que perder tempo. Depreende-se da teoria heideggeriana o seguinte paradoxo: o homem nunca é coisa alguma, muito menos feliz. A felicidade para o homem, segundo o filósofo, só se confirma na morte, com a qual ninguém deseja se encontrar.
A ideia de se tirar proveito das 24 horas que cada dia nos oferece perpassa os cinco filmes que selecionamos para outro dos eternos recomeços a que nos submete a vida. O princípio de um novo ano leva-nos, inexoravelmente, a refletir acerca de nossa conduta, nossa relação com o outro, o modo, geralmente superestimado, como nos enxergamos, muito maiores e reivindicando uma importância que não temos. Em “A Mão de Deus” (2021), de Paolo Sorrentino esquadrinha um relato perturbador de suas lembranças de meninice, remetendo ao gênio do Fellini de “Amarcord” (1973); já no adoravelmente cínico “Paddleton” (2019), Alexandre Lehmann abre uma janela sobre a vida exasperantemente comum de dois amigos, que decidem passar por cima da gravidade da morte próxima de um deles praticando um jogo de regras bastante frouxas. Os cinco títulos, todos na Netflix e apresentados do mais novo para o de estreia mais recente, firmam-se como lances memoráveis do cinema contemporâneo ao promover a reflexão do público e proporcionar-lhe conforto frente às angústias mundanas, decerto as mesmas que hão de se repetir em 2023. Renovemos nossa força. Feliz ano novo, de novo!

Paolo Sorrentino parece querer pavimentar uma trajetória que pelo menos chegue perto do sucesso que Federico Fellini (1920-1993) alcançou em sua vida profissional com obras-primas do quilate de “Amarcord” (1973). Em “A Mão de Deus”, o diretor — cujo refinamento estético inegavelmente tornou-se marca registrada de seus trabalhos, vide “A Grande Beleza” (2013) —, fellinianamente, transpõe para a tela eventos que pontuaram sua intimidade. Os tipos que habitam seu filme são desabridamente caricatos, um aspecto explorado à larga pelo veterano, que jamais permitiu que nenhum deles resvalasse na vulgares — apesar de chegarem bem perto muitas vezes. Fellini, contudo, sempre dava um jeito para que o charme e o encanto de cada uma daquelas almas sobrepujassem sua natureza irregular, grotesca, bestial até. E Sorrentino segue o mestre.

Sozinhos, sem quaisquer vínculos familiares e com alguns problemas sociais, os vizinhos Andy e Mike foram feitos um para o outro. Eles não sabem ao certo o que é a felicidade, mas felicidade para eles é comer pizza congelada todos os dias, assistir a filmes antigos de kung-fu, tentar decifrar enigmas bestas e, claro, praticar paddleton, um jogo inventado pelos dois. A vida nada empolgante desses amigos segue um curso monótono, mas perene na comédia dramática de Alexandre Lehmann, até que Mike é diagnosticado com câncer no estômago e sente que não vai viver muito mais. A fim de preservar sua qualidade de vida e o pouco que lhe resta de sanidade mental, Mike toma uma decisão: prefere morrer o mais breve possível, enquanto ainda tem saúde, por meio do suicídio assistido, legalizado em alguns estados americanos.

Sonhos podem se tornar obsessões, que por seu turno podem virar um grande problema. O casal Rachel e Richard enfrenta um momento delicado, precisamente por não saber que existem limites que devem ser respeitados mesmo quando se trata de alcançar o propósito mais nobre de suas vidas. Interpretados por Kathryn Hahn e Paul Giamatti, os protagonistas de “Mais Uma Chance” só pensam em como será poder ter, afinal, a sensação de serem pais, algo por que vêm batalhando há muito tempo. E tempo é um dos fatores que joga contra eles. Na dramédia dirigida por Tamara Jenkins em 2018, Rachel e Richard já passaram dos quarenta — ela tem 41 anos; ele, 47 —, mas seguem firmes quanto a realizar a aspiração maior que os une, ter um filho. O tempo de que não dispõem mais é, sim, um grande adversário, mas na verdade há outras evidências atirando-lhes na cara o quão exaustiva pode ser essa jornada. Rachel já não é mais fértil e Richard tem um único testículo e ele está bloqueado, ou seja, é capaz de produzir esperma, mas não espermatozoides. Em outras palavras, o sonho está se rendendo à força de uma realidade cruel.

O italiano Gabriele Muccino quer envolver o público numa atmosfera de otimismo voraz. Desabridamente idealista, onírico, “À Procura da Felicidade” é uma exaltação ao sonho, ao delírio, quiçá à loucura, tudo com métodos milimetricamente estudados e de eficiência comprovada — não por acaso, o filme continua a ser campeão de bilheteria em workshops e palestras de motivação empresarial para multimilionários e pés-rapados com algumas contas a acertar com o destino (por motivos diversos, evidentemente) mais de década e meia depois de lançado, num já longínquo 2006. O mais intrigante é que a história contada por Muccino nada tem de original, talvez justamente porque inspirada na vida como ela é, feia, intransigente, dura, cruel, tanto pior se se atravessa um ciclo de pequenas tragédias pessoais que, claro, redundam em perda da capacidade laboral e em episódios de transtornos mentais de maior ou menor intensidade. Que atire a primeira pedra aquele não sofreu por apuros de dinheiro.

Sofia Coppola é uma diretora tão bissexta quanto mordaz. Poucas vezes na história do cinema surge alguém com sua capacidade de, sem prejuízo do humor, expor o pesar de que toda criatura dotada de um mínimo de razão e sentimento é vítima, a despeito da quadra da vida em que se encontre, não quanto ao desgoverno do mundo ou à impossibilidade das utopias, mas no que toca às escolhas que tem feito. “Encontros e Desencontros” (2003) junta um casal improvável, um anticasal, feito de um homem e uma mulher que se reconhecem, ao termo de um martírio silencioso e arrastado, que precisam se refazer, começar boa parte de sua jornada do zero antes que seja tarde demais. Filha de um dos grandes mestres nesse ofício, a diretora usa de enquadramentos milimetricamente calculados a fim de dar ao público a visão mais próxima do que sentem seus personagens, do que lhes vai pela cabeça, tentando entender sua gênese e seus apocalipses, como também fez o pai, Francis Ford Coppola.