O ano de 2022 foi uma torrente de produções que aguçaram o senso crítico do espectador, primando por alargar as perspectivas e dar novo fôlego a opiniões as mais contraditórias, que se repelem entre si enquanto também se complementam, provando uma vez mais que a arte espelha a vida no que esta tem de densa, de bela, de única. Se Guillermo del Toro preferiu tomar uma história centenária e forjá-la a seu talante, acrescentando-lhe elementos da análise social mais fina — sem prejuízo do sonho puro, que fala ao que temos de mais arcaico com a ajuda da tecnologia de ponta da computação gráfica —, como fez em “Pinóquio”, Edward Berger também aposta numa narrativa eternizada nas páginas da literatura para repisar as humanas misérias e a sede de vida malgrado num cenário de morte iminente e bárbara, caso de “Nada de Novo no Front”. A Bula solta mais uma de suas tradicionais listas, com os dez filmes mais badalados deste ano, muitos na expectativa do Oscar para arrebatar suas merecidas estatuetas e entrar para a história do cinema — todos na Netflix.
lejandro González Iñárritu parece continuar firme em seu propósito de não mais tolerar as delicadezas cínicas que sustentam o mundo. Em “Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades”, Iñárritu personifica muitas das neuroses não apenas do gênero humano, mas das Américas, da história do continente americano, da glória e do desajuste de ser artista numa era de violências perpetradas das mais diversas maneiras, das mensagens que condenam, das palavras que matam. El Negro, como é conhecido em Hollywood, já conta cinco Oscars no currículo e este seu trabalho mais recente — pleno de toda a originalidade e de todos os maneirismos pelos quais a Academia costuma se enamorar — parece que vai juntar-se aos outros homenzinhos dourados do mexicano. Com seu 13° filme, o diretor inclina-se a escancarar um pouco mais seu choque frente à ignorância maciça que rege nossos dias, espraiada pelos campos mais insólitos e mais urgentes. Combinando o lirismo agridoce e niilista de “Biutiful” (2010) às iluminações acerca da pobreza da arte nas sociedades pós-modernas, como o exposto em “Birdman ou (A Inesperada Virtude Da Ignorância)” (2014), e sem deixar de lado as experimentações que bem o caracterizam, caso de “O Regresso” (2015), Iñárritu não tem pudor nenhum de escarafunchar as chagas nunca cicatrizadas dos Estados Unidos. Há em boa parte dos 160 minutos de projeção metáforas sobre o que é ser chicano para além dos domínios do Rio Grande, mas este é um relato pessoal também. Silverio Gacho, o bardo do título, é um alter ego muito bem pesado de El Negro — que incorporou o apelido até como um meio de autoafirmação —, e malgrado juntem-se ao roteiro, de Iñárritu e Nicolás Giacobone uma legião de personagens, Silverio, atuação irretocável de Daniel Giménez Cacho, resume tudo quanto se precisa saber a respeito de El Negro, da vida, de seu cinema. Do mundo e de sua feiura, indizível, mas ainda assim doce.
Filmes sobre a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) não são exatamente raros. O palpite, errôneo, deve-se ao fato de muitas dessas produções remontarem a tempos quase esquecidos, dados por mortos, mas que, em razão do comportamento errático e insensato do gênero humano, voltam à baila de quando em quando, trazendo consigo a necessidade de se refletir sobre os rumos a serem tomados pelas nações neste alucinado e alucinante século 21, estigmatizado já na primeira hora como uma era de extremos, violência e medo. “Nada de Novo no Front” (2022) não é, com a licença do trocadilho, novidade alguma. Mais recente adaptação do romance homônimo do alemão Erich Maria Remarque (1898-1970), o filme de Edward Berger, compatriota do escritor, reconstitui os passos de uma longa marcha, iniciada em janeiro de 1929 e protagonizada por um garoto assustadiço, levado a amadurecer na marra em meio à barbárie tão característica de uma guerra.
“O Desconhecido” é um filme singular. Evitando abusar da violência, Thomas M. Wright, o diretor-roteirista, escancara situações do expediente policial que o público leigo nem sonha serem possíveis. Tentando encontrar alguma resposta minimamente sensata que aponte uma justificativa para a degradação moral em que mergulhamos todos há algum tempo, Wright compõe uma narrativa ligeiramente farsesca, entre a sátira e o ensaio, sobre policiais que fazem o que lhes autoriza a lei — ou seja, muito pouco — na intenção de levar a cabo a investigação de um assassinato. Uma vez que se dão conta de que observar todos os ritos legais é, mais do que inútil, contraproducente, um deles em especial aposta a última ficha, numa manobra arriscada que pode redundar em derramamento de sangue, começando pelo seu. O texto de Wright prima pela sutileza, mas nunca se deixa levar pela ambiguidade fácil. Aqui, ninguém fica muito bem no papel de mocinho; entretanto, cada personagem desempenha o papel que dele se espera, sem muita margem para grandes tergiversações.
Aludindo a uma canção dos Beatles, o roteiro de Johnson ilumina as muitas camadas aparentemente translúcidas das relações humanas, hábeis em filtrar toda a luz que lhes possa atravessar e vertê-la numa energia pouco benfazeja. Como não poderia deixar de ser, o diretor segue reverenciando — de um modo bastante original, que se diga — Agatha Christie (1890-1976), sem prejuízo dos trechos cômicos que se prestam a um tempero bem dosado para uma narrativa saborosa, estilo de que a Dama do Crime decerto não se ressentiria. A exemplo do que se denota do filme que abre a franquia, Johnson perturba o seu tanto a ordem do estabelecido no gênero e vive transfigurando o enredo, sem importar muito quem fará o quê, mas a que altura da história se vai chegar ao assassino, que a propósito, ainda não existe.
O roteiro de Harry Bradbeer, escrito em parceria com Jack Thorne, se esmera por cristalizar a figura da mocinha, apresentada ao cinema por Bradbeer em 2020, com texto solo de Thorne, como uma personagem capaz de merecer uma franquia para chamar de sua depois dos sete livros de Springer (e contando). Já nas primeiras cenas, Millie Bobby Brown deixa muito claro quem é a estrela aqui, o que, convenhamos, não é tão difícil frente à atuação quase mecânica de Henry Cavill, o primogênito dos Holmes. Enola está numa quadra tensa de sua incipiente carreira: decidiu encampar a atividade detetivesca, para a qual tem, sim, alguma vocação — e o desempenho de Brown faz com que o espectador compre a ideia —, mas, por óbvio, esbarra em obstáculos de maior ou menor importância, e o gênero feminino, por estranho que pareça, está na segunda categoria.
Guillermo del Toro é um mestre em chacoalhar as certezas de quem prestigia seu trabalho. Em quase quarenta anos de carreira, o mexicano escalou o olimpo dos grandes diretores do cinema, seguro de seu talento e do que queria representar. Hoje, quando se fala em Del Toro, pensa-se incontinente naquelas histórias plenas de uma maravilhosa hediondez, que tratam logo de reduzir a pó a hipocrisia e a burrice de quem alardeia aos quatro ventos sua justiça, suas boas intenções, seu bom-mocismo, todas essas meras camadas de um verniz xexelento, que mal esconde a perversão das emoções calculadas. Com sua versão para “As Aventuras de Pinóquio”, romance do jornalista e escritor florentino Carlo Collodi (1826-1890) escrito em 1881 e publicado dois anos depois, o diretor confirma seu intento de continuar subvertendo as ilusões de seu vastíssimo público, proporcionando novas dúvidas em vez das fáceis respostas pelas quais muitos anseiam.
Em “Arremessando Alto”, Jeremiah Zagar une esses dois elos, o do jogador consciencioso, sabedor de suas imperfeições, mas que já não pode mais fazer nada por sua vida no limite das quatro linhas porque seu tempo passou. Essas quatro linhas, são, no caso, as que definem as dimensões da quadra de basquete, que disputa com o futebol americano e o beisebol a preferência do torcedor nos Estados Unidos; esse jogador, ou melhor, ex-jogador, Stanley Sugarman, que usara o talento e a paciência que foi exercitando ao longo dos anos entre um garrafão e outro para revelar ases da bola como ele fora. Uma reviravolta, no entanto, faz com que seus planos escorreram por entre seus dedos instáveis devido a um acidente fora de quadra do qual nunca se recuperou por inteiro e ele volte a ter de rodar o mundo à procura de titãs da bola prontos a serem mostrados às plateias de todo o globo. Ele, claro, não está nada satisfeito com isso — até que numa viagem à ilha espanhola de Maiorca, ele se depara com Bo Cruz, vivido pelo jogador de basquete profissional Juancho Hernangómez.
Romain Gavras expõe muito do que pensa a respeito das complexas e tensas relações a governar o mundo de homens diferentes entre si, mesmo que nem tenham exatamente um perfil belicoso e preferissem nunca ter de sair do conforto de pusilanimidade. Seu “Athena” (2022), crônica repleta de lances impactantes da vida nos subúrbios de Paris hoje, não procura condenar vilões nem eleger heróis que entregam a vida de bandeja para que a humanidade se salve. Gavras parece não ter pejo algum de dizer o óbvio — até porque o óbvio sempre tem seus incontáveis meandros. Essa talvez seja a maior qualidade de seu filme que, fugindo de abordagens declaradamente políticas, chega a sugerir genuínas iluminações no que diz respeito ao problema recorrente de uma juventude que se perde em meio à barafunda da conjuntura sociopolítica do nosso tempo, sistêmica no mundo todo. Esse apocalipse real e sem nada do glamour dos filmes de ficção científica espreita-nos à socapa, vestido com as roupas de um passado de opróbrio.
Religião e fé são variações de um mesmo tema, que alcança ainda o misticismo e, refinando-se um pouco mais a perspectiva, as relações entre Deus e o homem. Se a natureza divina se faz presente em rigorosamente todos os seres, animados ou inanimados, racionais ou não, como pensou Spinoza, o Criador seria também capaz de apresentar-se sob uma forma curiosamente ambígua, juntando num único ser a constituição sem falhas que o difere de qualquer outra entidade e a matéria, perecível e dúbia, que conhecemos tão bem. O chileno Sebastián Lelio tem tarimba em descrever situações nos mais matizados graus de incômodo. Em “O Milagre” (2022), Lelio resolve encampar novos e indigestos pontos de vista, desta feita voltadas a uma das controvérsias mais frutíferas da civilização. O diretor mira Deus e de que maneira certos homens O veem, explicitando a confusão deliberada em torno da necessidade de se guardar a fé e de se estar sempre atento aos propósitos nada ingênuos que visam a manter aceso o interesse nas coisas do Altíssimo.
A morte cai bem aos tipos que protagonizam “Ruído Branco”, a nova comédia de absurdos de Noah Baumbach, um arguto observador da natureza humana no teatro do possível e, com mais ênfase, do impossível, da vida, sem que um e outro desses recortes colidam entre si ou interfiram no curso da eterna paranoia que define o gênero humano. Baumbach reedita alguns dos elementos de que lançou mão no incensado “História de um Casamento”, a começar por seu ator principal. Adam Driver encabeça uma trama em que o mergulho no mais baixo do homem visto no filme de 2019 — uma adaptação arejada do sinistro bergmaniano de “Cenas de um Casamento” (1973) — continua a se fazer presente, mas encaixa-se à perfeição no cinismo imanente (e escrachado) de Don DeLillo, em cujo romance o texto do diretor se baseia.
Os incontáveis golpes com que nos assalta o destino vêm em boa parte sob a forma de apuros de saúde, sem a qual pouco se pode fazer e contra os quais é mister lutar. Ganhar a vida com o suor do próprio rosto, com trabalho, honesto, digno e capaz de absorver-nos de tal maneira que esquecemos das questões fundamentais e inadiáveis que nos atormentam em segredo, é um princípio imperioso pelo qual se guia toda mulher e todo homem que se pretende admirável, nem que seja para si mesmo. No fundo, é disso que se trata “O Enfermeiro da Noite”, a história de um assassino em série devotado, que foi deixando um rastro de mortes ao longo de mais de sete anos, mas principalmente o tributo a uma mulher singular. Lindholm é hábil em manipular o foco do espectador para uma direção e, aos poucos, fazê-lo notar a grande personagem que deixa a o segundo plano e ocupa o centro do roteiro de Krysty Wilson-Cairns, baseado no livro homônimo de Charles Graeber sobre um evento melancolicamente verídico.
Famoso por incluir em seus filmes a superação de desafios — como em “Boyhood — Da Infância à Juventude” (2014), sobre o processo de amadurecimento de um garoto ao longo de doze anos, com o mesmo elenco, ou “Waking Life” (2001), em que cenas, paisagens e atores foram coloridos e tiveram a imagem redefinida graças a um software desenvolvido em parceria com sua equipe, exatamente como acontece durante a feitura de uma animação —, Richard Linkater apresenta em “Apollo 10 e Meio: Aventura na Era Espacial” a fusão desses dois trabalhos. Aqui, Linklater narra o cotidiano de uma família americana de classe média no final dos anos 1960 no subúrbio da maior cidade do Texas, estado conhecido pelo rigor de sua gente, irrigado artificialmente pelo dinheiro da NASA, a agência espacial americana, que desenvolve uma de suas fases diante da irrequietude da população. O roteiro de Linklater coloca todas as informações de destaque na boca de seu personagem central, Stan, um garoto de dez anos e meio, que presencia as mudanças da sociedade nos Estados Unidos e no mundo confrontadas com as transformações em sua própria família.