As luzes e sombras, reentrâncias e saliências, subidas e declives, toda a ambivalência que pode haver no espírito de cada um, livra-nos da perdição que nunca deixa de espreitar a natureza humana, mas lança-nos também a uma pletora de situações em que o cerco se fecha a ponto de assaltar-nos a nítida impressão, envolta em graus variados de certeza, de que habitamos um universo paralelo, lugar mágico, santo e diabólico, onde sucedem crimes de toda sorte, mocinhos e vilões trocam de roupa e de lugar sem nenhuma cerimônia e a vida reveste-se de uma aura desabridamente fantasiosa, tornando-se impossível apartar o que tem valor e, portanto, deve ser guardado, daquilo que só pega por empréstimo o vigor do que se sustenta por si só e emula a força que jamais há de ter. Nesses momentos, somos então obrigados a criar novos jeitos de nos relacionar com o mundo — ou, por outra, com o que entendemos ser o mundo — que por seu turno se metamorfoseia mil vezes por segundo, progride e desanda sem que possamos fazer nada a respeito a não ser tentar uma adaptação qualquer, ou nutrir expectativas menos desvairadas sobre a vida e seus mistérios, processo que não raro degringola em obsessão, paranoia, frustrações, melancolia, tristeza, morte.
O desajuste fundamental do homem para com o meio que o rodeia, o existir, os outros homens vêm como um lembrete de que mecanismos de repressão nunca poderão ser dispensados da rotina do cidadão comum, que pensa ser capaz de se livrar dos obstáculos a sua felicidade subvertendo o quanto possível a dureza do real, o que, evidentemente, não consegue. Se o homem comum se dá conta de que não lhe compete se empenhar em mudanças tão profundas, indivíduos psiquicamente descompensados e propensos por sua constituição torta a aventuras extralegais que redundam em perigo, cadeia ou tragédia têm certeza de que a vida é o que eles querem, e esse é o limite entre o caos e o inferno. Todos os sete títulos que agrupamos na lista abaixo remetem, de uma forma ou de outra, a essa dicotomia fundamental do espírito do homem, e ainda conseguem figurar entre as grandes novidades na Netflix que, merecidamente, clamam por um instante do seu tempo. Queridinho de dez entre dez cinéfilos ao redor do mundo, o mexicano Alejandro González Iñarritu é um dos nomes que despontam na corrida maluca ao Oscar 2023 com “Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades”. Se El Negro brilha com a história de um jornalista exilado na própria vida, Rian Johnson reedita o estrondoso sucesso de “Entre Facas e Segredos” com “Glass Onion: Um Mistério Knives Out”, em que se aprofunda nos joguinhos, digamos, excêntricos de ricaços tão entediados quanto doidos. Acrescidos aos outros quatro, os três longas são mencionados pelos leitores da Bula como os grandes momentos do cinema na Netflix em 2022 e são todos lançamentos, à exceção de “Entre Facas e Segredos”, de 2019. Mantivemos o critério de sempre, em ordem alfabética e do mais novo para o de estreia mais recente, e contamos com seu retorno. Diga para nós qual o seu favorito e desde já um 2023 cheio de boas surpresas e mais excelentes filmes.

Alejandro González Iñárritu parece continuar firme em seu propósito de não mais tolerar as delicadezas cínicas que sustentam o mundo. Em “Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades”, Iñárritu personifica muitas das neuroses não apenas do gênero humano, mas das Américas, da história do continente americano, da glória e do desajuste de ser artista numa era de violências perpetradas das mais diversas maneiras, das mensagens que condenam, das palavras que matam. El Negro, como é conhecido em Hollywood, já conta cinco Oscars no currículo e este seu trabalho mais recente — pleno de toda a originalidade e de todos os maneirismos pelos quais a Academia costuma se enamorar — parece que vai juntar-se aos outros homenzinhos dourados do mexicano. Com seu 13° filme, o diretor inclina-se a escancarar um pouco mais seu choque frente à ignorância maciça que rege nossos dias, espraiada pelos campos mais insólitos e mais urgentes.

Em “Glass Onion: Um Mistério Knives Out”, segundo filme de uma trama que tem muita lenha para queimar, Rian Johnson mantém a linha de um suspense bem elaborado, abrindo o horizonte dramático dos tipos que apresenta, ricaços entediados que se dedicam a joguinhos tolos, mas perigosos, para esquecer sua irrelevância. Aludindo a uma canção dos Beatles, o roteiro de Johnson ilumina as muitas camadas aparentemente translúcidas das relações humanas, hábeis em filtrar toda a luz que lhes possa atravessar e vertê-la numa energia pouco benfazeja. Como não poderia deixar de ser, o diretor segue reverenciando — de um modo bastante original, que se diga — Agatha Christie (1890-1976), sem prejuízo dos trechos cômicos que se prestam a um tempero bem dosado para uma narrativa saborosa, estilo de que a Dama do Crime decerto não se ressentiria.

Adaptado do mangá homônimo assinado por Akio Fukamachi, “Hell Dogs: A Casa de Bambu” é um exemplo de até onde esse gênero, que mescla texto, imagem e ação, chega. Veterano do cinema e da animação japoneses, Masato Harada por seu turno é referência na direção de filmes que se furtam à obviedade há quatro décadas. Neste trabalho, lançado em setembro de 2022, Harada consegue preservar a aura de fantasia típica dos mangás ao passo que define um andamento manifestamente cinematográfico ao longa, que sobrepõe tramas e reviravoltas sem perder o compasso. O diretor-roteirista toma a narrativa original por base, mas também avança por outras frentes, evidenciando seu dinamismo. Harada aposta no gore das histórias de Fukamachi como uma cortina de fumaça em que uma cornucópia de pistas falsas obnubila o ambiente e instiga a audiência a entrar mais fundo no que é contado.

Para os personagens de “Hereditário”, as humanas misérias ressoam como sinos de uma estranha catedral perdida no deserto, reverberando aquele barulho aos confins do mundo na lembrança da danação eterna. Ari Aster faz de seu filme uma espécie de caldeirão em que despeja a pletora de velhas mágoas e tantos outros sentimentos malditos que azucrinam uma família, fervendo-os sem pressa até que desse caldo emerja a substância com a qual elabora uma trama de marcada pelo rancor. Antes, todavia, o diretor empenha-se no jogo de gato e rato que atravessa três gerações, e com o que vai se formando desse processo constrói uma história pungente, que segue doendo mesmo depois de vencidas as mais de duas horas de projeção, transcorridas num andamento entre ágil e reflexivo, mas nunca arrastado. Tudo parte de uma acertada estratégia quanto a mesmerizar a audiência, incrementar o suspense e fazê-lo metamorfosear-se num terror psicológico que ultrapassa a tensão e molesta também a disposição física de quem ousa assistir até o final.

As personagens de “7 Mulheres e um Mistério” são, no fundo, prisioneiras — de si mesmas, umas das outras, da vida que não têm — e travam uma guerra silenciosa, tácita — contra a vida que têm e de que não se julgam merecedoras, contra suas rivais tão íntimas, contra o que se tornaram. Imprimindo seu estilo a “8 Mulheres” (2002), o thriller cômico de François Ozon baseado na peça de mesmo nome de Robert Thomas (1927-1989), levada aos palcos parisienses em 1958, Alessandro Genovesi dá novo fôlego a um gênero rico de possibilidades em suas múltiplas invencionices, engraçado ao passo que é também inteiramente pontuado por notas melancólicas, tristes mesmo, de onde emerge uma tragédia que furta-se a se consumar, esquiva-se da fatalidade inevitável que compõe o destino dos tipos femininos em questão e se realiza no último ato, na derradeira cena, sempre amenizado pelo texto pleno de fantasia de Genovesi e Lisa Nur Sultan, roteirista experimentada em despertar no público sensações perigosamente contraditórias, em que a pena e a repulsa caminham de mãos dadas, conforme se vê em “Na Própria Pele — O Caso Stefano Cucchi” (2018), dirigido e também escrito por Alessio Cremonini, sua reconstituição de um crime bárbaro contra uma vítima que transgredia os limites do moralmente admissível.

A morte cai bem aos tipos que protagonizam “Ruído Branco”, a nova comédia de absurdos de Noah Baumbach, um arguto observador da natureza humana no teatro do possível e, com mais ênfase, do impossível, da vida, sem que um e outro desses recortes colidam entre si ou interfiram no curso da eterna paranoia que define o gênero humano. Baumbach reedita alguns dos elementos de que lançou mão no incensado “História de um Casamento”, a começar por seu ator principal. Adam Driver encabeça uma trama em que o mergulho no mais baixo do homem visto no filme de 2019 — uma adaptação arejada do sinistro bergmaniano de “Cenas de um Casamento” (1973) — continua a se fazer presente, mas encaixa-se à perfeição no cinismo imanente (e escrachado) de Don DeLillo, em cujo romance o texto do diretor se baseia.

Rian Johnson é um dos muitos diretores a reverenciar — a seu modo — a Dama do Crime. A escritora britânica Agatha Christie (1890-1976) continua a servir de base para uma infinidade de filmes de suspense, o que se pode ver às claras aqui. Todavia, em “Knives Out”, Johnson perturba o seu tanto a ordem do estabelecido no gênero e transfigura a narrativa, não importando mais quem fez o quê, mas a que altura da história se vai chegar ao assassino. O morto em questão é Harlan Thrombey, célebre autor de livros de suspense — e o espectador adora esses joguinhos metalinguísticos —, degolado com requintes de crueldade aos 85 anos em sua própria mansão. Benoït Blanc, renomado detetive com direito a perfil na revista “New Yorker” e tudo, parece o único habilitado a solucionar o caso, e logo conclui que, por um motivo ou outro, todos os que conviviam com Thrombey tinham razões de sobra para matá-lo. Os pontos em comum com “Assassinato no Expresso Oriente”, publicado em 1934, são inegáveis, mas “Entre Facas e Segredos” é original ao revelar, já no segundo ato, as circunstâncias em que se deu o homicídio que sustenta todo o longa.