O Rei Pelé, falecido hoje aos 82 anos, foi o maior gênio de todos os tempos. Não há discussão. Sei o que está pensando, que sou um fanático por futebol, que só penso em futebol, que acho que o futebol é o centro da vida, do universo e tudo mais. Nada mais falso. Trata-se de uma constatação puramente lógica, científica e até mesmo matemática. Trata-se de uma disputa por pontos. Senão vejamos. Todos os grandes gênios possuem concorrentes próximos. Se temos Da Vinci, temos Michelangelo. Se temos Einstein, temos Newton. Se temos Muhammad Ali, temos Rocky Marciano. Se temos Schumacher, temos Hamilton. Se temos Marlon Brando, temos Laurence Olivier. Os exemplos são os mais diversos, nas mais diversas modalidades e categorias da atividade humana. Em todas elas seus expoentes máximos disputam o topo. Não acontece o mesmo no futebol. No futebol, a distância entre Pelé e seus pretensos concorrentes é oceânica.
Alguns ingênuos citam Maradona como sendo melhor do que Pelé. Provavelmente, os mesmos vão começar a citar Messi agora. Os defensores de Maradona ou Messi, não possuem nenhum argumento sequer razoável. Fazem polêmica oca. Os números, os títulos, a habilidade com as duas pernas, a impulsão, o cabeceio, o senso tático, estão a favor do Rei. Outros candidatos, como Cruyff e Beckenbauer, admitiram o óbvio. Parte da irrefutabilidade do reinado de Pelé é o fato dele ser ótimo ou excepcional em todos os fundamentos do futebol, sem, necessariamente, ser o melhor em nenhum. Citando as palavras do jornalista André Fontenelle, para revista “Placar”, “Pelé não foi o maior jogador de todos os tempos: foi outra coisa, porque a lista de tudo o que fez o põe em uma categoria à parte, acima de tudo. Os mortais que discutam entre si”.
Pelé parece ter sido uma entidade que desceu e cumpriu uma missão, tamanha a impossibilidade física de suas realizações. Está acima de hierarquizações mundanas. No dia 8 de março de 1958, Nelson Rodrigues publicou na revista “Manchete Esportiva” uma crônica na qual o apresentou como seu personagem da semana. Escreveu: “Examino a ficha de Pelé e tomo susto: dezessete anos! Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis”. Adolescente parecia já saber tudo.
Mas pode o Rei ser melhor do que o próprio Rei? Eis o mistério da fé. É possível escolher entre o Pelé de 1970, com 29 anos, e sua versão adolescente na copa de 1958? Talvez a estatística ajude. Em 1958, Ele jogou três partidas e marcou seis gols. Foi a revelação da copa. Não demoraria a ser coroado. Em 1970, Pelé jogou seis partidas e marcou quatro vezes. Sem contar, claro, seu gol de falta mal anulado contra o Peru e os três quase gols históricos. O primeiro chutando do meio de campo contra Ivo Viktor, goleiro da Tchecoslováquia, depois a cabeçada indefensável que o inglês Banks defendeu e, finalmente, o drible desconcertante em Mazurkiewicz, do Uruguai. Matematicamente, seria fácil criar uma vantagem artificial para o Rei Menino, favorecendo o conjunto de 1958. Mas seria intelectualmente desonesto.
Apesar de ter absoluta certeza que Pelé nunca aprendeu nada, tudo o que sabia nasceu sabendo, é possível fazer a concessão de pelo menos tentar aplicar nele as leis que valem para os mortais comuns. A experiência costuma ser fundamental no esporte. Normalmente, um atleta maduro de 29 anos é melhor do que um jovem estreante de 17. Sabemos que Pelé não é normal, mas, somente para não ignorarmos totalmente as leis da física, a biologia, a química e a psicologia, consideremos que o Pelé de 1970 fica em 1º, por ter sido o maestro e a âncora de sua equipe, o de 1958 em 2º.
Talvez a questão seja mesmo essa: o Pelé de 29 anos foi o maior gênio de todos os tempos, o Pelé de 17 anos foi o segundo maior gênio de todos os tempos, para o terceiro lugar “os mortais que discutam entre si”.
Infelizmente, Edson Arantes do Nascimento, diferentemente de Pelé, que era tratado na terceira pessoa por seu avatar Edson, era um desses mortais, como ficou provado hoje. Ninguém carrega uma entidade tão poderosa dentro de si por tanto tempo sem pagar o preço. O patriarca Moisés, diante da sarça ardente, sabia do que estou falando.
E Pelé? O mais provável é que tenha voltado para seu planeta em 1977. Justiça poética que tenha terminado sua carreira, ou missão, em um time chamado Cosmos.