Durante anos tentei bater a meta de ler 100 livros em um ano, entre 1° de janeiro e 31 de dezembro. Por várias vezes cheguei perto: 87, 89, 91, 93, 94. A dificuldade estava, justamente, por não escolher um livro pelo tamanho, mas, sim, por recomendações da crítica, escritores e de amigos.
Finalmente, esse ano, consegui o inalcançado objetivo: terminei o centésimo livro, na madrugada de hoje (31 de dezembro), exatamente no dia que completam 86 anos da morte de Miguel de Unamuno, que deixou uma das mais célebres frases sobre o ato de ler: “Ler, ler, ler, viver a vida que outros sonharam”.
Listei 30 livros, dentre os 100, que considero os melhores que li em 2022. Optei por não listar livros de poesia, até porque foram poucos, a única exceção foi “Une Saison en Enfer”, de Rimbaud, que me perseguia há anos. Nenhum livro foi escolhido pelo tamanho, mas, sim, pela pesquisa crítica — da mesma forma que percorri livros de 1.800 páginas (como foi o caso da trilogia reunindo a poesia completa do maranhense, Luís Augusto Cassas, li livros com pouco mais de 60 páginas, caso de “As Coisas de Que Não me Lembro, Sou, do mineiro Jacques Fux.
No total, foram 21.700 páginas, o que dá uma média de 217 páginas para cada livro. Outra coisa que me chamou atenção, ao final, foi a quantidade de mulheres que li. Mas nenhuma entrou na lista por cotas, e sim pela qualidade de suas obras. O mundo (incluindo as brasileiras) tem a melhor geração de escritoras das últimas décadas, e descobri-las foi um raro prazer.
Nonagésimo nono (99º) livro lido, em 2022: “A Consulta”, da alemã Katharina Volckmer. Em poucas palavras: “Só as mulheres parecem incapazes de superar o cordão umbilical. Já notou que, quando as mulheres abandonam os filhos para realizar seus sonhos de ter dinheiro, homens mais jovens e uma vagina feliz, elas se transformam em monstros?” Em um monólogo visceral, a personagem — uma mulher trans, alemã, que vive na Inglaterra —, conduz o leitor por uma jornada de vergonha, revelações, aceitação e assombros, ao mesmo passo em que tenta se libertar de suas origens familiares e do fardo histórico de um país assombrado pelas atrocidades do Holocausto. A narrativa se passa em um consultório médico, que se torna uma espécie de confessionário da personagem, onde narra, com riqueza de detalhes, suas dores e a epopeia de suas depravações: “Nunca mais precisaria me escutar contando como adquiri o hábito de gozar em cima de pequenos retratos do Führer ao imaginar seu bigode fazendo cócegas nas minhas partes. E como achava difícil chegar ao orgasmo sem fazer a saudação”. Divertido, engraçado, chocante, mas também severo, sério e dolorido, o livro é, sobretudo, o diário de uma guerra interior, contra algo que habita os mais profundos recônditos da mente, uma guerra travada com a própria identidade sexual — mas com alguma esperança de que uma mudança anatômica seja capaz de reparar a história: “Não somos o destino de ninguém, e não fui eu quem plantou aquela árvore diante da sua janela e projetou aquela sombra sobre sua infância, não fui eu quem o ensinou a ter medo do escuro. (…) Transformemos este corpo em outra coisa. Uma centelha de fogo no céu.” Nota: 10
Nonagésimo quinto (95º) livro lido, em 2022: “Aqui. Neste Lugar”, da brasileira Maria Jose Silveira Em poucas palavras: “Nenhum homem merece viver, nenhum.” Difícil descrever o impacto que causa o novo romance de Maria José Silveira, de quem conhecia, apenas, “A Mãe da Mãe de sua Mãe e suas Filhas”, que li há muitos anos. Terno, encantador, engraçado, mas, ao mesmo tempo, severo, dolorido e chocante, o livro presta um tributo e incorpora personagens de Mário de Andrade, mas vai além, bem além: “O cheiro forte de suor e estrume, que vem dos grandes estábulos e predomina sobre tudo, ali cede um pouco para outro cheiro forte: o de sangue, placenta e leite. O cheiro de mulheres parindo e bebês nascendo (…) os bebês com vagina são imediatamente jogados no chão para que conheçam desde cedo a vida bruta de guerreiras”. A autora criou um mundo único, próprio, um universo mitológico e distópico comandado por mulheres num mundo pré-civilização, onde a vida e a sobrevivência eram, somente, um sopro. Uma alegoria crua e desoladora, mas, também, uma metáfora potente, poderosa, sobre o passado, o presente e o futuro desse lado do hemisfério — sem nenhum didatismo histórico —, mas com a veemência dos grandes narradores. O livro é, sobretudo, uma viagem encantada a mundos e personagens que povoaram nossa infância, com tudo que ela traz de inquietante, provocadora e brutal: “Quando morre uma pessoa amada, o mundo fica menor. O mundo sempre fica menor quando alguém morre, diz a voz rouca do velho.” Para ler, reler e se encantar. Nota: 10
Nonagésimo segundo (92º) livro lido, em 2022: “Cemitério de Elefantes”, do brasileiro Dalton Trevisan. Em poucas palavras: seria muito dizer que Dalton Trevisan é o maior contista brasileiro vivo e um dos maiores do mundo? “Cemitério de Elefantes”, é apenas um dos livros que, talvez, possa provar isso. Publicado originalmente nos anos 1960, a edição original reúne 23 contos que hipnotizam e causam uma sensação de estranhamento e desolação. Não existem grandes tragédias ou acontecimentos. O que existe é a vida real pulsando em cada narrativa. Homens e mulheres naufragados na angústia de viver, se debatendo no limite da passionalidade, dos pequenos prazeres, dos sonhos enterrados em algum lugar de Curitiba. Não é apenas literatura, é o vórtice cruel da realidade, a vida que acontece nos subterrâneos, e dos quais, quase sempre, ficamos à margem. A melhor definição foi feita pelo crítico literário Fausto Cunha, na apresentação do livro: “Não se preocupe com as histórias. Se elas não terminarem, é porque os personagens regressaram à sua vida normal, ou Dalton não quis acompanhá-los por mais tempo. Todos eles estão vivos, a distância entre as páginas deste livro e a realidade é menor do que entre uma rua e outra.” Todo contista deveria ler esse livro. Nota 10
Octogésimo sétimo (87º) livro lido, em 2022: “Festa no Covil”, do mexicano Juan Pablo Villalobos. Em poucas palavras: o livro é um pequeno tratado sobre a inocência, a solidão e o confinamento absoluto. No meio do nada, em uma fortaleza guardada por homens armados, um garoto herdeiro de um barão do narcotráfico tenta enganar a solidão colecionando chapéus, investigando os negócios do pai e pesquisando palavras exóticas no dicionário. Entre seus desejos, ainda não atendidos, está a compra de um hipopótamo anão da Libéria, para completar o minizoológico que tem em casa. Quando seu pai precisa desaparecer por um tempo, o garoto deixa seu mundo fechado e terá a oportunidade não apenas de conseguir o hipopótamo, mas, também, de viver uma reviravolta existencial. Cômico, mas, ao mesmo tempo, cruel e perturbador, o romance mostra como a naturalização da violência vira paisagem e nos acostumamos a ela: “Nós não usamos nossos tigres pros suicídios nem pros assassinatos. Quem faz os assassinatos são o Miztli e o Chichilkuali, sempre com orifícios de balas. Os suicídios eu não sei como a gente faz, mas não é com os tigres. Nós usamos os tigres pra comer os cadáveres”. Encantador e brutal. Nota: 10
Octogésimo sexto (86º) livro lido, em 2022: “Sátántangó”, do húngaro László Krasznahorkai. Em poucas palavras: um livro indescritível, inquietante e monstruoso. Tem a complexidade desafiadora de William Faulkner, em “O Som e a Fúria”, o hipnotismo mágico de García Márquez em “Cem Anos de Solidão”, e o estranhamento profundo de Juan Rulfo, em “Pedro Páramo”. Numa aldeia abandonada por todos, inclusive Deus, onde chove eternamente e as casas estão em ruínas, um grupo de desajustados se reúne em uma taberna suja, malcheirosa e infestada de aranhas, para esperar a volta do Messias — o que os tiraria do caos: um homem com poderes mágicos, antigo morador da vila, que teria ressuscitado depois de uma morte misteriosa. Enquanto aguardam o salvador, o grupo de esfarrapados embebeda-se, dança e tece conjecturas sobre o que fizeram com suas vidas e sobre a esperança que parece renascer com a chegada do redentor. Mas seria o salvador, exatamente, quem eles acreditam? É a pergunta que permanecerá até as últimas páginas, embora o autor vá deixando pistas ao longo da jornada. Em suma: poucas vezes, em minha vida, li algo tão brutal e tão impactante, em que a sensação provocada pela escrita é mais importante do que a própria história. Nota: 10
Octogésimo quinto (85º) livro lido, em 2022: “Bartleby e Companhia”, do espanhol Enrique Vila-Matas. Em poucas palavras: um livro inclassificável, que desafia rótulos literários — pode ser lido como romance, conto ou ensaio biográfico, embora, convencionalmente, não se enquadre em nenhum dos gêneros. Estruturado como se fosse notas de rodapé, Enrique Vila-Matas parte do personagem Bartleby, criado por Herman Melville, para contar a história de autores que — voluntariamente ou não — optaram pelo silêncio. Chamado de “sóis negros”, nomes emblemáticos da história da literatura como Robert Walser, Felipe Alfau, B. Traven e J. D. Salinger e uma centenas de outros, misturam-se a nomes imaginários como o Paranoico Pérez — autor que nunca conseguiu escrever um livro, porque, sempre que tinha alguma ideia brilhante, Saramago o copiava antes. Vila-Matas traça um painel fabuloso sobre o universo da negação e do drama de ser abandonado pela criatividade. Se fosse fazer uma reparação, diria, apenas, que faltou o brasileiro Raduan Nassar. De resto, o livro é uma aula de literatura. Nota: 10
Octogésimo terceiro (83º) livro lido, em 2022: “Galileia”, do brasileiro Ronaldo Correia de Brito, romance vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura. Em poucas palavras: “O calor me enfada. Ele vem das pedras que afloram por todos os lados, como planta rasteira. Nada lembra mais o silêncio do que a pedra, matéria-prima do sertão…”; em uma narrativa dura, cortante e desesperançada — mas, ao mesmo tempo, hipnotizante —, Ronaldo Correia de Brito conta a história de três homens: Ismael, Davi e Adonias, que voltam à casa do avô, que agoniza em uma cama, da decadente Fazenda Galileia, muitos anos depois de terem deixado o sertão do Ceará. O reencontro com a família — suas tragédias e rancores —, e os fantasmas que estavam, supostamente, enterrados, são a matéria prima do livro. Uma odisseia amarga em busca do passado, não pelas agruras do que foi, mas pela sua imutabilidade, pelo que traz de nuclear e irreversível no tempo presente. Ao fim, a saga de Ronaldo Correia de Brito faz lembrar Tolstói: “Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”. Um livro inesquecível e arrebatador, dica do Jacques Fux. Nota: 10
Octogésimo segundo (82º) livro lido, em 2022: “Romance 11, livro 18”, de Dag Solstad, considerado o mais importante romancista norueguês contemporâneo. Em poucas palavras: um homem abandona a mulher, o filho pequeno e um emprego estável e se muda com a amante para uma região provinciana, nas proximidades de Oslo, na Noruega. Na cidade, torna-se tesoureiro municipal e membro de um grupo de teatro. Duas décadas depois — e já separado da amante —, ele reavalia suas escolhas e tenta tomar as rédeas de sua própria existência, criando, com a ajuda um médico viciado em remédios, um plano absurdamente surreal e perigoso, que impactará de forma definitiva o resto de sua vida. Cínico e igualmente brilhante, Dag Solstad cria, magistralmente, uma trama sem precedentes na história da literatura. “Romance 11, livro 18”, recebeu o Prémio da Crítica na Noruega. Nota: 10
Octogésimo primeiro (81º) livro lido, em 2022: “Vício Inerente”, do americano Thomas Pynchon. Em poucas palavras: na Califórnia dos anos 1970, o detetive e maconheiro profissional, Doc Sportello — dono da LSD Investigações —, é contratado por sua ex-namorada para investigar o desaparecimento de um poderoso homem do mercado imobiliário. A partir desta premissa, surgem conspirações, reviravoltas, mais conspirações e mais reviravoltas, envolvendo traficantes, surfistas, dentistas, hackers, contrabandistas, organizações secretas… tudo em ritmo de paranoia e bad trips. Pynchon utiliza a trama para tecer considerações e destilar seu conhecimento, quase intergaláctico, acerca de tudo, e, por meio de Sportello, vai deixando pistas para que o leitor ligue os pontos. O livro é um compêndio visceral de erudição, loucura, sensibilidade, gírias setentistas, vocabulário bukowskiano e, claro, humor, que, em muitos momentos nos faz gargalhar. Não é um livro para todos, mas é bem divertido — e um dos grandes momentos da literatura do século 21. Nota: 10
Octogésimo (80º) livro lido, em 2022: “As Maravilhas”, da espanhola Elena Medel. Em poucas palavras: com uma prosa absurdamente hipnotizante, o romance conta a história de duas mulheres muito diferentes, mas que seguem, por circunstâncias alheias às suas vontades, o mesmo percurso de vida — deixam suas famílias em uma região provinciana da Espanha e vão trabalhar em Madrid. Mais de três décadas separam as duas histórias, mas, como uma maldição, trazem o mesmo drama em comum: como o dinheiro pode definir uma vida e matar todos os sonhos de alguém. Com elegância, lucidez poética e absoluto domínio da escrita, Elena Medel constrói uma jornada visceral pelo coração feminino, diante das inquietações, cobranças e do fardo brutal que recai sobre cada mulher. Magistral e inimitável, não existem outras palavras. Nota: 10
Septuagésimo nono (79º) livro lido, em 2022: “Illuminations” e “Une Saison en Enfer”, do francês Arthur Rimbaud. Em poucas palavras: coletânea que traz o único livro publicado, pessoalmente, por Rimbaud — “Une Saison en Enfer” —, feito a partir de uma vaquinha e distribuído a, apenas, sete amigos, entre eles, Paul Verlaine. “Une Saison en Enfer” (Uma Cerveja no Inferno, na edição portuguesa, traduzida por Mário Cesariny), é um longo poema que subverte o modelo clássico, lançando as bases do simbolismo moderno, que influenciaria centenas de escritores, além de outras artes como a pintura e a música. Já “Illuminations”, reúne os poemas em prosa, escritos até 1875, e é considerado um marco da poesia mundial. Rimbaud abandonou a poesia aos 19 anos. “Não que ele tenha exaurido o demônio, mas o seu gênio, ou um outro eu, o deixara exasperado, forçando-o ao exílio”, nas palavras de Harold Bloom. Nota: 10
Septuagésimo sétimo (77º) livro lido, em 2022: “Ano da Fome”, do finlandês Aki Ollikainen. Em poucas palavras: um dos livros mais brutais e desconcertantes que já li. Um relato perturbador sobre a Grande Fome na Finlândia, que matou um terço da população. O ano é 1867, o inverno rigoroso faz com que a colheita não vingue e milhares de camponeses abandonem suas terras e tentem chegar a São Petersburgo, onde, imaginam, ainda exista, ao menos, pão. No caminho, a brutalidade da fome e do frio se manifesta a cada passo, a cada casa abandonada, a cada cadáver que fica pelas estradas — e o que ainda existe de humanidade, nas pessoas, vai se esvaindo como flocos de neve. Um livro intenso como poucos. Nota: 10
Septuagésimo sexto (76º) livro lido, em 2022: “Declínio de um Homem”, de Osamu Dazai, considerado um dos maiores escritores da literatura japonesa do século 20. Em poucas palavras: um livro escrito com as vísceras. Um jovem estudante, Yozo, alter ego do autor (que morreu aos 39 anos), tenta sobreviver em Tóquio, convivendo com a falta de dinheiro, o vício em álcool e, depois, morfina, e as relações fracassadas e trágicas. A história é reconstruída em três cadernos, nos quais é possível acompanhar sua degradação, dia após dia. Um relato visceral, marcado por fantasmas interiores, desgraças, sombras e poucas, pouquíssimas, alegrias. “Com o tempo, aprendi que bebidas, cigarros e prostitutas eram os instrumentos de que eu dispunha, ainda que de forma temporária, para dissipar meu pavor dos seres humanos. Mesmo se precisasse vender tudo o que possuía para dispor desses instrumentos, eu o faria de bom grado.” Nota: 10
Septuagésimo terceiro (73º) livro lido, em 2022: “Lontananza Bar”, do mexicano David Toscana. Em poucas palavras: em um pequeno povoado, em algum lugar esquecido do México, dia após dia, noite após noite, homens se encontram em um bar, chamado Lontananza, para destilarem as pequenas felicidades e grandes amarguras de vidas que estão sendo diluídas pelo tempo. Cada capítulo pode ser lido como um conto independente ou como partes de uma história que se bifurca. David Toscana conduz o leitor com tamanha maestria, que nos sentimos parte da narrativa, como se estivéssemos ali, tomando uma cerveja quente e lutando para continuar existindo. Um livro encantador, que nos deixa meio órfãos, meio nostálgicos, mas, também, resolutos de que a literatura é uma máquina do tempo capaz de nos conduzir aos recônditos mais profundos de nós mesmos. Nota: 10
Septuagésimo primeiro (71º) livro lido, em 2022: “Apocalipse Bebê”, da francesa Virginie Despentes. Em algumas palavras: poucas vezes um livro me deixou tão perturbado. Além do hipnotismo atordoante da história, o desespero de querer saber até onde a autora conseguirá levar a narrativa é quase sufocante. Uma garota desaparece e uma detetive particular é contratada para encontrá-la. Inexperiente, a detetive pede ajuda a uma mulher misteriosa e lendária no mundo da investigação. A história, que se passa entre Paris e Barcelona, descortina um mundo sombrio, brutal, desolador e com consequências inimagináveis — que só se revelam nas dez páginas finais. A contradição no estilo está presente em todo o livro: em muitos momentos temos a impressão de que é um típico livro saído das fábricas de bestsellers, mas — como se fosse mágica —, ao virarmos a página, o estilo se metamorfoseia e se torna tão forte e primoroso que faz lembrar J. M. Coetzee, Arnon Grunberg, Ernesto Sabato ou o Dostoiévski, de “Memórias do Subsolo”. Um livro que vai, oficialmente, desgraçar sua cabeça. Nota: 10
Sexagésimo sétimo (67º) livro lido, em 2022: “Foe”, do sul-africano J. M. Coetzee. Em poucas palavras: Coetzee recria, de forma magistral, a história de Robinson Crusoé. Após um motim no navio em que viajava, Susan Barton é deixada à deriva e encontra abrigo em uma ilha deserta. O lugar é habitado, apenas, por dois homens: Cruso e seu escravo Sexta-Feira. Resgatada, um ano depois, Susan procura o escritor Daniel Defoe para escrever a história. Por meio de cartas e alguns poucos encontros (e aqui entra toda a genialidade de Coetzee), ela narra, de forma visceral — misturando delírio e realidade —, sua estada na ilha e o período posterior ao resgate. Usando a técnica da narrativa moldura, Coetzee edificou um verdadeiro monumento literário, uma construção brutal e perturbadora, mas na mesma proporção de seu lirismo. Nota: 10
Sexagésimo quarto (64º) livro lido, em 2022: “Ninguém Precisa Acreditar em Mim”, do mexicano Juan Pablo Villalobos. Em poucas palavras: Difícil descrever esse livro — literatura de viagem, drama, policial, máfia, thriller… Um estudante de letras, do interior do México, que pretende fazer um doutorado em Barcelona, é engolido pela máfia e vê suas expectativas ruírem como um livro que termina. Juan Pablo Villalobos, o autor (e personagem) cria uma atmosfera visceral — poucas vezes vista na literatura contemporânea — mas, apenas, para enganar o leitor e deixá-lo perturbado em suas convicções precipitadas. Um livro sem redenção e com um dos melhores finais da história recente da literatura. Não é somente uma aula de como construir uma história, é também uma aula de como levar o leitor ao precipício, mas fazê-lo acreditar, até a última página em redenção. Nota:10
Sexagésimo primeiro (61º) livro lido, em 2022: “Os Irmãos Sisters”, do canadense Patrick deWitt, livro finalista do Man Booker Prize. Em poucas palavras: nos Estados Unidos do século 19, em um lugar onde a vida vale tanto quanto nada, dois irmãos ganham dinheiro matando pessoas, por encomenda. A caminho de um novo trabalho, os irmãos vivem uma odisseia brutal, melancólica, agonizante e sangrenta, tudo narrado de uma forma quase operística. O livro tem clara influência de Cormac McCarthy e, também, respiros cômicos que lembram os Bolsilivros de Faroeste, mas sem escorregar paras os pastiches do gênero. E essa, talvez, seja a grande sacada do autor: contar uma história devastadora, mas, mesmo assim, fazer-nos rir. E é exatamente esta combinação entre brutalidade, risos absurdos e agonia permanente, que transforma o livro em uma pequena obra-prima. Nota: 10
Quinquagésimo sexto (56º) livro lido, em 2022: “As Coisas de que Não me Lembro”, do brasileiro Jacques Fux, com desenhos de Raquel Matsushita. Em poucas palavras: li quase tudo que Jacques Fux escreveu, mas nenhum de seus livros é tão tocante e hipnotizante como este. Como José Luís Peixoto fez em ‘Morreste-me’ — ao falar sobre a morte do pai e o luto —, Fux, aqui, presta um tributo à memória, ao passar em revista sua vida, os pequenos e grandes esquecimentos, suas origens judias, seus amores redivivos, e as consequências das memórias (inventadas, esquecidas ou redentoras) no homem de hoje. Sem dúvida, um dos mais belos livros de 2022. Nota: 10
Quinquagésimo quinto (55º) livro lido, em 2022: “Sobre a Terra Somos Belos por um Instante”, do vietnamita Ocean Vuong. Em poucas palavras: dica do escritor Jacques Fux, o livro é uma carta de um filho para uma mãe que não aprendeu a ler: “Eu tenho 28 anos, 1m62 de altura, 51 quilos. Sou bonito de exatamente três ângulos e horrível de todos os outros. Estou escrevendo para você de dentro de um corpo que era teu. O que é o mesmo que dizer: estou escrevendo como um filho”. Um relato devastador e comovente, que mistura ternura, brutalidade e desespero. É, ao mesmo tempo, um grito incontido de amor de um filho por sua mãe, mas também uma metáfora sobre não ser ouvido. Nota: 10
Quinquagésimo quarto (54º) livro lido, em 2022: “Olive Kitteridge”, da estadunidense Elizabeth Strout. Em poucas palavras: ganhador do prêmio Pulitzer de ficção, o livro conta a história de uma professora aposentada e as vidas que se desenrolam ao seu redor — marido, filho, amigos. Uma espécie de ensaio, às vezes rude, às vezes triste, às vezes engraçado, mas que ilustra à perfeição a passagem, implacável, dos anos e suas consequências em cada um de nós. Das pequenas felicidades aos dramas definitivos, é possível se identificar com cada um dos personagens. São 13 histórias que se cruzam e podem ser lidas como contos ou capítulos de um romance. Tocante e inesquecível. Nota: 10
Quinquagésimo (50º) livro lido, em 2022: “À Beira-Mar”, do tanzaniano Abdulrazak Gurnah, autor ganhador do Nobel de Literatura de 2021. Uma história devastadora e brutal. Dois homens, um professor de meia idade e um idoso exilado, que não se veem há 30 anos, passam em revista a história de suas vidas, suas famílias e seu passado em comum, marcado por intrigas, mentiras, traições e ruína. Não é nenhum exagero dizer que é um dos grandes livros que li em minha vida. Nota: 10
Quadragésimo segundo (42º) livro lido, em 2022. “Primavera num Espelho Partido”, do uruguaio Mario Benedetti. Em poucas palavras: Benedetti é um dos poucos autores que conseguem transformar tristeza em prazer literário. Durante a ditadura uruguaia um homem é separado de sua família e preso acusado de crimes políticos. A história é contada a partir das percepções de seis personagens: ele próprio, sua mulher, sua filha, seu pai, um amigo de militância e o próprio Benedetti. As consequências da prisão deixam sequelas irreversíveis… que nem mesmo a anistia (cinco anos depois) será capaz de curar. Mas a história é contada com tanta beleza que, ao terminarmos o livro, não fica nenhuma réstia de tristeza ou amargor, apenas deslumbramento. Nota: 10
Quadragésimo primeiro (41) livro lido, em 2022: “A Mulher que Escreveu a Bíblia”, do brasileiro Moacyr Scliar. Em poucas palavras: o livro foi uma dica da escritora Cintia Moscovich. Um dos livros mais divertidos que li nos últimos anos. Uma mulher feia, não uma feia comum, mas uma feia muito feia, absurdamente feia… que apesar de toda feiura se tornou uma das 700 esposas do rei Salomão. O detalhe é que ela tinha um talento especial: sabia ler e escrever. O texto de Scliar salta aos olhos em cada frase, em cada diálogo, misturando uma linguagem extremamente elaborada com gírias e palavrões. Me fez perguntar: por que eu não consigo escrever assim? Nota: 10
Trigésimo sétimo (37º) livro lido, em 2022: “Escute as Feras”, da antropóloga francesa Nastassja Martin. Em poucas palavras: Impactante. Uma dica do Enio Vieira que escreveu sobre ele na Revista Bula. O livro relata o “encontro” de Nastassja com um urso que estraçalhou seu maxilar e seu processo de recuperação e “cura”. “Meu corpo se tornou um território onde cirurgiãs ocidentais dialogam com ursos siberianos.” Faz lembrar Robert M. Pirsig, misturando Antropologia e Filosofia. Nota: 10
Trigésimo quinto (35º) livro lido, em 2022. “O Parque das Irmãs Magníficas”, da argentina Camila Sosa Villada. Em poucas palavras: cru, absurdo e sem redenção. Um manifesto explosivo sobre um grupo de travestis que frequenta um parque da cidade de Córdoba, na Argentina (cidade do cartunista Adao Iturrusgarai). Uma espécie de visita guiada a um tipo de existência que fascina e repele — mas sempre termina em tragédia. Nota: 10
Trigésimo quarto (34º) livro lido, em 2022: “Nossa Parte de Noite”, da argentina Mariana Enríquez. Em poucas palavras: o livro foi uma dica da professora Candice Marques. Terror e fantasia se misturam em plena ditadura militar argentina. Mariana Enríquez vai criando uma tensão permanente, descritiva, em conta gotas… de repente acelera para um ritmo frenético, quase, sufocante. Algo semelhante ao que faz nas narrativas de “As Coisas que Perdemos no Fogo”. Lembra Edgar Allan Poe, mas muito, muito, muito mais agonizante e visceral. “A verdadeira magia não se faz entregando o sangue dos outros, disseram-lhe uma vez. Ela é feita entregando o próprio sangue e abandonando qualquer esperança de recuperá-lo.” Nota: 10
Trigésimo terceiro (33º) livro lido, em 2022: “Os Pescadores”, do nigeriano Chigozie Obioma, talvez o mais importante nome da nova literatura africana. Em poucas palavras: um dos livros mais brutais que li em anos. Uma história cruel, mas ao mesmo tempo absurdamente humana e narrada com um talento raro. A vida de quatro irmãos inseparáveis esfaceladas pela profecia de um homem atormentado. A escritora Eleanor Catton, a autora mais jovem a ganhar o Prêmio Man Booker, chamou o livro de “Mítico”. Não está errada. É um livro aterrador e único. Nota: 10
Trigésimo primeiro (31º) livro lido, em 2022: “Indígenas de Férias”, do americano Thomas King. Em poucas palavras: um livro de diálogos, mau-humor e frases cortantes. Um casal indígena viaja pela Europa seguindo a rota de cartões postais enviados por um tio (que abandonou sua reserva com um show de faroeste 100 anos antes). Nota: 10
Décimo oitavo (18º) livro lido, em 2022: “Samarcanda”, romance do libanês Amin Maalouf. Em poucas palavras: a primeira vez que ouvi falar de Samarcanda, foi em um texto publicado pelo Marcelo Franco na Revista Bula. Fiquei encantando com a ideia de conhecer a cidade. Cheguei ao livro por causa do título. A ficção histórica gira em torno da vida do poeta persa, do século 11, Omar Khayyam e a publicação do “Rubaiyat”. Um livro brilhante, hipnotizante, que só me deu a certeza de que Samarcanda precisa ser visitada nos próximos anos. Resta apenas juntar alguns milhares de Som Uzbeque (moeda local), afinal, Samarcanda fica no Uzbequistão. Nota: 10