A vida seria uma inútil maravilha se, de tempos em tempos, não tivéssemos um rasgo de certeza quanto às incontáveis questões que fustigam o gênero humano. Conforme os anos se sucedem, mais a ideia de que tudo converge para um irremediável fim toma vulto, já que o plano físico, por mais amplo e até elástico que pareça, com sua ciência aplicada, firme no intuito de prolongar a vida do homem ad aeternum, é e sempre continuará a ser limitado. O passar do tempo e a maturidade — variações sobre um mesmo tema, que não necessariamente convergem para a mesmo direção — impõem-nos a lucidez do raciocínio que prega a importância fundamental de se encontrar no mundo um lugar que seja nosso, nosso e de mais ninguém, tendo claro que esse lugar não é um feudo, hereditário, imutável, sem fim, já que a própria vida não é nenhuma dessas coisas, e tampouco é sempre pacífica, idílica, plácida (e na maior parte da jornada é exatamente o oposto disso). Na verdade, a lúdica empreitada de viver jamais deixa de condicionar-se aos muitos desvios que o próprio existir trata de planejar com o capricho de que nunca seremos capazes — o que só torna nossa pequenez tanto mais irrefutável.
Viver é o princípio de uma caminhada longuíssima, percurso bastante acidentado rumo à dimensão de que não sairemos mais e na qual ingressamos ao cabo de experiências as mais diversas. Assaltam-nos todos os nefastos pensamentos, colhe-nos a desdita, a tragédia se lança sobre nós com sua fúria habitual, mas entraria na conta de um absurdo espantoso se, por outro lado, também não tivéssemos o gosto, por meio ilusório que fosse, da felicidade possível, essa companheira pouco fiel e nada lhana, com que nos acostumamos ainda em tenra idade, ansiando pela vinda da plena ventura. Andaç Haznedaroglu devota-se a preservar a tradição da delicadeza contundente do cinema turco. Com uma pergunta entre disparatada e de uma poesia quase infantil, Haznedaroglu insinua o que pretende com seu filme, memorabilia de uma mulher que ousou ter vontades e atreveu-se a realizá-las, sem medo das consequências, terríveis e injustas.
“Você Já Viu Vagalumes?” é um portento, a começar do roteiro. Yilmaz Erdoğan decerto é um dos maiores artistas em atividade na Turquia hoje. No texto que Haznedaroglu adapta com genialidade, Erdoğan replica alguns dos elementos que respondem pelos sucessos das grandes produções que colocaram o país no mapa da indústria cinematográfica do mundo ao defender assuntos universais sob a linguagem consagrada pelo Ocidente, ao passo que não prescinde de manifestar identidade própria. O nonsense cheio de lirismo de “The Butterfly’s Dream” (2013), por exemplo, se faz sentir todas as vezes em que Gülseren, a protagonista vivida por Ecem Erkek, toma a narrativa de assalto e desfia seu rosário de mágoas, muito bem temperadas por passagens espirituosas, em que relembra como enfrentara a tirania dos pais, Nazif e Iclal, de Engin Alkan e Devrim Yakut, enquanto surgem em quadro referências a desmandos ainda piores.
Erdoğan situa sua história no começo do século 20, dando a sua personagem central fôlego para discorrer acerca do amor romântico e a preocupação — legítima — de pais aterrorizados com a possibilidade da filha não se interessar pelo que todas as outras mulheres da época morreriam de desgosto se não o tivessem, um casamento, nem feliz nem triste (mas certamente muito mais triste que feliz, de uma tristeza muito mais longeva), filhos, um marido que as sustentasse, uma casa de que tomar conta. O desfecho, eivado de um moralismo um pouco simplista, indica que Gülseren fizera escolhas equivocadas; ainda assim, as paisagens mentais dessa mulher enclausurada em si mesma no fim da vida, remoendo arcaicíssimos rancores num asilo, compensam uma derivação batida e meio inconsistente para a crítica social, mesmo que as cenas em que a personagem de Erkek celebre a queda do fascismo, ao som de “Bella, Ciao!”, tenham uma graça e um sabor óbvios.
Filme: Você Já Viu Vagalumes?
Direção: Andaç Haznedaroglu
Ano: 2021
Gêneros: Comédia/Drama
Nota: 8/10