Filme sobre Steve Jobs, na Netflix, enaltece o gênio sem passar pano para suas falhas morais Glen Wilson / Open Road Films

Filme sobre Steve Jobs, na Netflix, enaltece o gênio sem passar pano para suas falhas morais

O desajuste fundamental do homem — para com o mundo, para com os outros, para consigo mesmo —, lhe serve como um sinal de que é-lhe necessário buscar o entendimento, primeiro sobre sua própria natureza, seus receios, carências e misérias. A partir de iluminação tão visceral e tão elucidativa, o gênero humano vai tomando pé de sua própria sabedoria, íntima, instintiva, idiossincrásica, que só se lhe revela ao cabo de algum sofrimento, de algum sacrifício, emergindo do mais fundo e bárbaro de seu espírito para dar-lhe um indício qualquer de que não há nenhuma extravagância em supor que se, passe o tempo que passar, um dia teremos a chance, por mínima que seja, de penetrar o reino vasto (e muitas vezes perigoso) do autoconhecimento, depois de uma peregrinação exaustiva e quiçá medonha por outras tantas cercanias de cujo chão só brota uma carnuda aridez.

Aprendemos ainda em tenra idade que o diabo nunca é tão feio quanto se pinta — até porque o diabo somos nós mesmos, ou a parcela de nós mesmos que inspira-nos apenas horror, que obriga-nos a cultivar a descrença sem critério em tudo, a intolerância generalizada, um ódio cuidadosamente destilado. Toda sorte de força demoníaca habita o coração do homem valendo-se de formas as mais insuspeitas, de contraditória beleza em muitas circunstâncias. Esse cenário de sentimentos profusos — desconexos entre si, mas nunca vazios de propósito, sempre agregando em seu corpo a insólita delicadeza que governa a rigorosa vida — dá azo a tanto alvoroço precisamente por furtar-se a entregar de bandeja o que nos salva e o que nos relega à condenação mais melancólica e irreversível. Steve Jobs (1955-2011) teve o condão de encarnar como poucos a maravilha e o pesar orgânico de um homem de gênio. Em sua versão sobre uma das personalidades mais brilhantes e controversas do século 21, Joshua Michael Stern tece um perfil biográfico altamente romanceado de Jobs, ora expondo o que hoje se define por toxicidade do homem por trás da Apple, ora enaltecendo sua capacidade de recapitular — extintas todas as outras possibilidades — e admitir erros, o que não deixou de ser uma atitude voltada a sua própria sobrevivência mercadológica e à manutenção de seu império.

Stern pensa Jobs como o Cidadão Kane de seu tempo, e não por acaso o roteiro de Matt Whiteley reserva uma ou outra semelhança com o lendário personagem de Orson Welles (1941) no clássico dirigido por ele. É inegável a comparação entre os dois a partir da infância desditosa de que ambos saíram com uma bagagem de pesados traumas para virar magnatas da comunicação, vislumbrando cenários até então inusitados, delirantes, mesmo dignos da mofa e da ojeriza de seus pares. O diretor enfronha-se na jornada heterogênea de seu protagonista, conduzindo a narrativa por um entra e sai de becos escuros e vielas estreitas, que ao termo de quatro décadas desemboca num Jobs maduro, anunciando o iPod, em 2001, àquela altura “a” verdadeira revolução no que dizia respeito a entretenimento e cultura, um aparelho espantosamente diminuto, tanto mais se se levar em conta que comportava mil arquivos de áudio, “para serem guardados no bolso” — não demorou muito e Jobs, amálgama perfeito de megaempresário, mecenas e cientista, chegou aonde sempre desejou, a comunicação de massa, com a consequente adaptação dos iPods em tocadores de notícias e audiolivros (e não teve de mover uma palha para isso: as emissoras de televisão, rádios e portais de internet fizeram tudo para ele, e de graça).

Não há de mais na forma como Stern escolhe contar sua história, mas é um deleite ver Ashton Kutcher incorporar um Jobs alquebrado pelo tempo e, talvez, já pelos primórdios do câncer de pâncreas que o viria a matar dez anos mais tarde, aos 56 anos, mais que apresentando seu xodó, defendendo-o, frente a uma plateia de universitários sonhadores, como ele fora nos anos 1970. Essa sequência inicial embasa as mais de duas horas que se impõem, sem que o enredo jamais derive para o discurso house organ, de que as grandes corporações lançam mão a fim de motivar seus “colaboradores” — mesmo quando a certo ponto da transição do segundo para o terceiro ato, o filme pareça querê-lo desabridamente. Kutcher é capaz de emprestar calor a um tipo notadamente frio, como falou dele o ex-parceiro e ex-amigo Steve Wozniak numa palestra a que assisti na faculdade, e mais: desenterra desse homem o sal supostamente sem gosto. Pena que um elenco de coadjuvantes tão bom, a começar pelo próprio Josh Gad, na pele de Wozniak, reste miseravelmente desperdiçado.


Filme: Jobs
Direção: Joshua Michael Stern
Ano: 2013
Gênero: Drama/Biografia
Nota: 8/10