Novo suspense da Netflix é um dos mais vistos da história e o mais assistido da atualidade em 150 países John Wilson / Netflix

Novo suspense da Netflix é um dos mais vistos da história e o mais assistido da atualidade em 150 países

O aspecto eminentemente contraditório de se estar só, do berço ao túmulo — uma das poucas certezas da vida e que abarca toda a humanidade — é que são recorrentes as situações nas quais não se percebe lá muito interesse de quem encontramos pelo caminho quanto a partilhar experiências, tampouco aquelas emoções capazes de justificar a estada de cada um no mundo e muito menos aquilo que nos empenhamos em manter no esconderijo que temos por ideal, a salvo da nefasta curiosidade alheia, certos de que assim nunca haveremos de padecer com surpresas desagradáveis. Por outro lado, a despeito da vontade atávica, ancestral e instintiva da fuga e do isolamento, persistimos, com uma pertinácia quase doentia, a adequação ao que esperam de nós, observando modelos tácitos de comportamento, tanto mais artificiosos à medida que deles nos ocupamos com maior atenção, pretexto bastante cômodo para que nos olvidemos de nossas solidões, nossos traumas, das neuras e, claro, das deleitosas manias que fazem nosso cotidiano um pouquinho menos enfaroso. Nem tudo é só desespero, contudo; é difícil, mas ninguém se cansa de esperar o milagre de conhecer alguém que, por acaso ou por destino, vive de um jeito muito parecido ao nosso. E sem que se anunciem terceiras intenções.

Depois de algum tempo, do alto da maturidade que chega para cada um na quadra oportuna, cristaliza-se a verdade de que os vínculos que estreitamos ainda em tenra idade são os que dispõem de mais chances de se manterem pelos desencontros da vida afora, malgrado, lamentavelmente, a própria vida se encarregue de desfazer esses laços assim que crescemos, o que só ratifica a ideia de que a amizade é mesmo uma força potente, que se bem conduzida, muda uma história, duas, transforma o mundo, se o deixarem. A união dessa mágica às humanas vontades, mesmo que pareçam condenadas a conviverem cada qual no seu círculo, como água e azeite, os sentimentos mais incongruentes entre si resultam em algo novo, indefinível, o grande segredo dos afetos que nunca se extinguem. Este, definitivamente, não é o caso dos personagens de “Glass Onion: Um Mistério Knives Out”. No segundo filme de uma trama que tem muita lenha para queimar, Rian Johnson mantém a linha de um suspense bem elaborado, abrindo o horizonte dramático que dos tipos que apresenta, ricaços entediados que se dedicam a joguinhos tolos, mas perigosos, para esquecer sua irrelevância.

Aludindo a uma canção dos Beatles, o roteiro de Johnson ilumina as muitas camadas aparentemente translúcidas das relações humanas, hábeis em filtrar toda a luz que lhes possa atravessar e vertê-la numa energia pouco benfazeja. Como não poderia deixar de ser, o diretor segue reverenciando — de um modo bastante original, que se diga — Agatha Christie, (1890-1976), sem prejuízo dos trechos cômicos que se prestam a um tempero bem dosado para uma narrativa saborosa, estilo de que a Dama do Crime decerto não se ressentiria. A exemplo do que se denota do filme que abre a franquia, Johnson perturba o seu tanto a ordem do estabelecido no gênero e vive transfigurando o enredo, sem importar muito quem fará o quê, mas a que altura da história se vai chegar ao assassino, que a propósito, ainda não existe. Se no longa de 2019, o morto cujo algoz se queria descobrir era Harlan Thrombey, célebre autor de livros de suspense — e essas jogadas metalinguísticas soem cair logo no gosto do público —, degolado com requintes de crueldade aos 85 anos em sua própria mansão, aqui, Benoït Blanc, o requintado detetive que inspira perfis na “New Yorker”, de um Daniel Craig mais e mais artisticamente maduro, é chamado a partilhar das excentricidades de convivas com muitos parafusos a menos. Mesmo a fina crítica social proposta pelo diretor-roteirista não se perde, dando ênfase tanto às doidices de Kate Hudson como Birdie Jay, a dondoca pouco inteligente que tenta sufocar seu esplim dando festas literalmente incendiárias (e se aborrece ainda mais), aproveitando para destilar, mas redes sociais uma intolerância racial entre ingênua e criminosa, como a Janelle Monáe, a consciência encarnada da turma, num papel duplo.

Talvez o grande defeito de “Glass Onion: Um Mistério Knives Out” seja mesmo o longuíssimo tempo de projeção, extenso a ponto de fazer quem assiste especular demais sobre o desfecho, perspicaz. Nada que não se possa resolver numa terceira empreitada de Benoït Blanc.


Filme: Glass Onion: Um Mistério Knives Out
Direção: Rian Johnson
Ano: 2022
Gêneros: Thriller/Crime/Comédia
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.