O filme mais perturbador da história do cinema acabou de chegar à Netflix Divulgação / A24

O filme mais perturbador da história do cinema acabou de chegar à Netflix

A despeito da sufocante ânsia por se destacar em meio à tacanhice e à sobrevalorização do não é exatamente uma necessidade, todos queremos ter a vida o mais normal, o mais comum, até o mais previsível quanto se puder, e uma vez que chega-se a esse paraíso, em que as ilusões restam devidamente sepultadas, as neuroses evolam-se como o perfume das rosas no primeiro raio de sol e as mágoas, derradeiro refúgio da tristeza, somem como se cansadas de não mais causar dor, reflora a esperança da felicidade possível, condição pela qual tanto se luta, mas sói escapar-nos por entre os dedos, como se, no fundo, algum detalhe nefasto indicasse que não a merecemos. A vida — ou o que sobra dela — erode-se por si só, num movimento que avança sem que nada mais se possa fazer além de cada qual tomar seu luto e suas lutas, lançar-se novamente à aventura do existir por outras sendas e tentar finalmente atingir a glória grande ou pequena que não se para nunca de buscar, malgrado a paralisia avassaladora, mas temporária, do sofrimento.

Para os personagens de “Hereditário”, as humanas misérias ressoam como sinos de uma estranha catedral perdida no deserto, reverberando aquele barulho aos confins do mundo na lembrança da danação eterna. Ari Aster faz de seu filme uma espécie de caldeirão em que despeja a pletora de velhas mágoas e tantos outros sentimentos malditos que azucrinam uma família, fervendo-os sem pressa até que desse caldo emerja a substância com a qual elabora uma trama de marcada pelo rancor. Antes, todavia, o diretor empenha-se no jogo de gato e rato que atravessa tres gerações, e com o que vai se formando desse processo constrói uma história pungente, que segue doendo mesmo depois de vencidas as mais de duas horas de projeção, transcorridas num andamento entre ágil e reflexivo, mas nunca arrastado. Tudo parte de uma acertada estratégia quanto a mesmerizar a audiência, incrementar o suspense e fazê-lo metamorfosear-se num terror psicológico que ultrapassa a tensão e molesta também a disposição física de quem ousa assistir até o final.

Aster dirige dá corpo a um enredo de sua própria autoria, não obstante tenha-se a impressão de que adapte um dos contos plenos do realismo mágico de Edgar Allan Poe (1809-1849) ou do chamado horror cósmico de H. P. Lovecraft (1890-1937), onde sobressaem aspectos que o racional não alcança e se procure mesmo dar toda a ênfase ao imponderável, mas o que se depreende de sua opção por ter disposto uma resumidíssima sinopse de seu filme numa tela negra no prólogo é que decerto quis emular a força do infortúnio da vida ela mesma, o que consegue. À primeira vista, “Hereditário” assemelha-se a não mais que uma nota de jornal, ofensivamente protocolar, transmitindo o relato de um crime bárbaro, mas só que logo resta esquecido no ramerrão do embate das mulheres e homens comuns contra seus leões particulares. Ainda no primeiro ato, o diretor vai dando pistas sobre onde quer chegar, afinal, e principia a rasgar a fantasia que envolve seu roteiro e seus personagens, aludindo à morte de uma velha senhora, a mãe e avó que parecia o esteio de um clã marcado pelo segredo.

Mais uma vez, toda atenção é pouca quanto a se compreender o rol de maldições a rondar os Graham, começando por Annie, a mãe sobrecarregada e histérica de Toni Collette — e nunca se pode afirmar com toda a certeza o que a define com mais precisão, se o cansaço de tudo, se a histeria. Como nada é o que parece, Annie se esmera por transmitir ao marido, Steve, de Gabriel Byrne, que os dois tem um casamento feliz. Bem, isso poderia ser verdade se não fossem os pais de Peter, o primogênito vivido por Alex Wolff, e Charlie, de Milly Shapiro, fonte das maiores amarguras de suas vidas, por razões diametralmente opostas.

Do segundo para o terceiro ato, Aster tira alguns ciscos dos olhos de seu público, momento em que fica evidente sua intenção de explicitar as inconveniências da vida a dois, idealizada por tantos, em especial depois da vinda dos filhos. No desfecho, Wolff brilha incorporando numa performance minimalista um certo Paimon, um dos motivos de tanta loucura e tanta tragédia. Mas não o único.


Filme: Hereditário
Direção: Ari Aster
Ano: 2018
Gêneros: Thriller/Mistério/Terror/Drama
Nota: 10/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.