Um dos maiores desafios que viver em sociedade implica é desnudar o próprio espírito, vasculhar seu baú de ossos à cata de alguma qualidade misteriosa, que só o mais íntimo de cada um conhece, tirá-la desse lugar indevassável e dotado de seus tantos segredos, e fazê-la sentida por todos, mas não de qualquer jeito. É preciso que se chegue sem soberba — mesmo que tudo não passe da mais grosseira encenação —, tão pacientemente quanto necessário para ganhar a confiança de quem nos rodeia e convencer a todos de que somos de fato maravilha que queremos que pensem que somos, sem, contudo, deixá-lo transparecer, e se possível dando a impressão de que não estamos nada interessados no que os outros hão de pensar de nós. Há uma infinidade de expedientes um tanto metafísicos quanto a se vencer as resistências que muitos hão de erguer como uma muralha invencível em nosso entorno, sem nenhuma cerimônia; é precisamente nessas ocasiões em que temos de redobrar a atenção e silenciar aqueles detalhes da nossa natureza que nos são desfavoráveis, não só por querermos ser aceitos e chamados a frequentar certos ambientes e orbitar certos universos, mas principalmente para, uma vez estando lá, demonstrar que não nos contentamos com pouco e merecemos ainda mais.
Cada um sabe quantos coelhos precisa tirar da cartola para ganhar a vida, que se furta a obedecer a parâmetros de toda espécie, dedica-se com particular afinco a subverter suas próprias regras e deixa estupefato o mais cínico dos homens com seus caprichos, tal como uma megera de maus bofes quando se decide por atazanar quem lhe negara um favor há muito tempo. Tomando justamente esse princípio, o crime não vem perdurando desde que o mundo é mundo se não por um apego doido ao método, sem o qual não seria mais que barbárie e já teria consumido todas as almas que se lhe atravessassem o caminho.
O Rio de Janeiro personifica essas e outras pérolas da natureza do homem, não apenas do brasileiro. Capital do Brasil Império até 21 de abril de 1960, quando cedeu a faixa a Brasília num processo marcado por corrupção, acidentes de trabalho que nunca viram a luz da lei e, por evidente, a megalomania que seria o estigma do Brasil Grande da ditadura militar (1964-1985), o Rio abriga e continua abrigando a nata da malandragem, ainda que hoje essa parcela do submundo tenha ascendido socialmente há muito e não se adeque mais ao lumpemproletariado, preferindo fuzis e granadas a navalhas e estiletes. Mini Kerti ancora a imagem desse Rio boêmio, lírico, exuberante — mas já à mercê de criminosos, românticos, mas criminosos assim mesmo — no protagonista de “Muitos Homens num Só”, que como sugere o título, não tem nenhum pejo em empregar um talento bastante específico para sobreviver.
A fotografia de Flavio Zangrandi é fundamental pra que o espectador absorva a riqueza do texto de Leandro Assis e Nina Crintzs, baseado nas crônicas de João do Rio (1881-1921). O jornalista carioca, conhecedor da cidade que o pariu, emprestou-lhe o apelido pelo qual tornou-se célebre e que o viu morrer, aos quarenta anos, de infarto, o dândi gordo, negro e homossexual dado a frequentar toda sorte de antro já em tenra idade, fala de um tal doutor Arthur Guedes, estelionatário antes que se tivesse uma definição precisa para a natureza de crimes em que se especializara, o arcaicíssimo conto do vigário. Guedes, o vigarista encarnado à perfeição por Vladimir Brichta, passa por um genuíno cavalheiro, engrupindo a polícia, representada pelo sisudo e competente delegado Félix Pacheco, de Caio Blat, e Barreto — talvez uma singela homenagem ao nome de batismo do cronista —, um ajudante entre atrapalhado e indolente, vivido por Silvio Guindane. O enredo não vai muito além desses clichês grudentos, mas saborosos, mormente se comparados com a situação em que a Cidade Maravilhosa parece condenada a repisar ad aeternum, como paga por tanta beleza e tanta alegria gratuita, que emana de toda parte. Principalmente de seus desgraçados morros.
A entrada de Alice Braga e Pedro Brício, na pele de como Eva e Jorge, até sugere um inusitado (e algo pacífico) triângulo amoroso com Guedes — e eu tenho certeza de que João do Rio teria tido muito prazer em concluir dessa forma seu relato —, mas o filme deriva mesmo para a solução formulaica, em que Kerti mantém cada personagem em sua respectiva gaveta, mas sugere que tudo há de continuar no mais perfeito caos sob o sol que banha da Urca ao Recreio, passando pela avenida Atlântica e pela Providência. Sérgio Cabral, agora solto e meu vizinho, que o diga.
Filme: Muitos Homens num Só
Direção: Mini Kerti
Ano: 2014
Gêneros: Drama/Alegoria histórica
Nota: 8/10