Deus saiu para comprar cigarros e nunca mais voltou

Deus saiu para comprar cigarros e nunca mais voltou

Calma lá, patriota. Me deixa contar. Sonhei que eu estava enganado, que Deus realmente existia e que resenhávamos contentes numa mesa de bar de uma movimentada praça de alimentação celestial. Ainda não tínhamos aprendido a transformar a água em vinho, como faziam os hippies, então, sedentos de justiça, matávamos chopes — no bom sentido; Deus era amor — com uma alegria indisfarçável. Afinal, não era todo dia que o Altíssimo se reservava ao direito de dar um tempo na correria, de curtir o happy hour na companhia de um cronista incréu que só devia ter parado no céu por engano de um anjo subalterno ou por mero acaso.

Por sorte, eu escapara do baculejo e da checagem da minha capivara, de tal forma que, só me restava sorrir e me regozijar — adoro esse verbo — com o vacilo do anjo subalterno que vigiava os portões do paraíso. Fisicamente, Deus não era nem um pouco parecido com a figura empolada que eu tinha apreendido na minha mente a partir dos livros didáticos e do curso mequetrefe de catequese, época áurea da minha infância quando eu me distraía reparando nas canelas lisas das meninas. Papai do Céu não era aquele velhote sisudo, sistemático e barbudo. Notava-se, contudo, que ele tinha aparado as costeletas, ficando um pouco parecido com o cantor Lemmy, da banda Motorhead — não encontrei a droga do trema no teclado para colocar sobre a letra “o”. Ainda assim, a sua aparência era de um sujeito bon-vivant com idade superior à minha. Menos mal. Eu não suportaria ouvir o veredito de uma jovem divindade na hora do meu juízo final.

Deus não estava sentado em trono esplêndido, como era de se esperar. Conversávamos num mesmo patamar, numa mesma sintonia, assentados em tamboretes de couro-de-clérigo-anglicano, travando o convescote numa intimidade impensável, no tête-à-tête, um papo reto do tipo olhos nos olhos. Precisava ver como ele falava de forma eloquente, como se fossemos chegados, sem se importar que eu era um ex-poeta, um ex-parteiro, um excomungado com ar apatetado que fora tocado, não pelo fura-bolo do urologista ou do espírito santo, mas, antes de tudo, pelo baixíssimo teor alcoólico da iguaria gelaaaaaaada que sorvíamos em prestimosos canecos de estanho.

Estranho é dormir e nunca sonhar. Eu sonhava. E como eu sonhava. Em matéria de tentar acabar de uma vez por todas com tamanho mistério existencial, eu bebia na fonte. Nem de longe, o céu era parecido com um campo de concentração de nuvens esvoaçantes que cheiravam a gelo seco. A tese de que Deus era um ser superior, justo, porém, bipolar, ora se mostrando negligente, ora agindo de forma misericordiosa, não me parecia nem um pouco plausível. Deus era um boa praça.

Os canecos faziam fila indiana. Ana, uma garçonete desencarnada dotada de generosos nacos de carne nas curvas, dava-me uma trela infernal, antevendo uma situação teoricamente incompatível com o clima celestial. Pensei que na próxima encarnação, haveria de traçá-la. Apesar de nos sentirmos altos — acima do nível estratosférico, eu supunha — Deus punha tento nos meus atrevimentos de reles mortal e parecia incomodado ao ter que me explicar por que, até o dia da minha recente morte, ainda não tinha feito uma aparição pública para revelar toda a verdade à humanidade: quem ele era; como, quando e por que tinha surgido; o que pretendia da ser humano além de submissão, bondade e fé cega.

Das pedras, da poeira e dos bichos, inferi que ele nada pretendia, pelo simples fato de serem criaturas ignóbeis que não lhe faziam perguntas constrangedoras, nem punham em xeque a sua existência e a sua onipotência. Seria muito mais eficiente que Deus agisse de forma mais proativa, abrindo caixa preta da criação do universo ao divulgar, ele próprio, com a autoridade que lhe era facultada pela ignorância humana, as regras básicas da existência terrena e até mesmo extraterrena, sem o intermédio de profetas, de gurus, de líderes religiosos e de mentecaptos disfarçados com verniz de genialidade.

Mas, as coisas absurdas só sucedem nos sonhos, nos contos ou nos delírios. Aproveitando a embriaguez e o ensejo, toquei no assunto da guerra na Ucrânia. Vladimir Putin já tinha mandado avisar que não haveria trégua durante o Natal e que as forças militares russas continuariam a despejar artilharia pesada contra os ucranianos, fazendo com que as crianças, os velhos e os dementes confundissem os flashes dos morteiros no céu com as luzes do Natal.

Deus engoliu em seco. Parecia tocado de indignação, de raiva, de desencanto. Como se o mirar de seus olhos jaboticabados fosse um míssil teleguiado na direção das minhas retinas impertinentes, socou com força o tampo da mesa num rompante inesperado que fez balançar os canecos vazios, além de assustar a garçonete desencarnada.

— Desencana, Meu Pai. Foi apenas uma brincadeira — tentei contornar a situação valendo-me de falsa intimidade.

Deus respondeu que a guerra não era um assunto da sua alçada, muito menos, da alçada do diabo. Fez questão de frisar que tinha criado o homem à sua imagem e à sua semelhança, provavelmente por ócio, por ledo engano, num dia infeliz, quando estava sentado à beira da nada padecendo de solidão. A humanidade fora provida do livre arbítrio para escolher se cheirava a flor ou se a arrancava do canteiro para que fosse depositada num copo com água, a fim de que morresse murcha, triste, silente e inodora. Parecia um vate inflamado. Apreciei a beleza da sua resposta metafórica, calculando que a transcreveria na próxima crônica que escrevesse, caso despertasse vivo na manhã seguinte.

— Mais um chope, por favor — pediu o Criador do Universo, tentando disfarçar a irritação.

Perguntei se podíamos pedir também um petisquinho, mas, ele se levantou do tamborete de forma atabalhoada, claramente contrariado com o rumo que a prosa tinha tomado. Apesar do corpanzil não ser constituído de matéria orgânica palpável, percebi que Deus cambaleou, ao levitar torto por um instante. Daí, inspirou profundamente até reencontrar o prumo certo para tocar em frente.

— Moça, onde fica o banheiro? — perguntou, como se o céu não fosse obra sua também. Vai ser humilde assim lá na casa de carvalho, ó, pá! — pensei.

Ofereci os meus préstimos para acompanhá-lo até o mictório, mas, ele resmungou que era velho, mas, não era inválido, que conseguia se virar sozinho e que não precisava de companhia para tirar água benta do joelho. Parecia encapetado, fulo da vida, arrependido por ter me dado corda naquela tarde. Ou seria noite? Não havia tempo nem espaço no paraíso. Por fim, comentou que iria até a esquina — nunca imaginei que tivesse esquina no céu — para comprar cigarros e nunca mais voltou.

Eberth Vêncio

É escritor e médico.