“O Perseguidor”, conto publicado em 1959 e reunido no volume Armas Secretas, tornou-se um dos textos mais emblemáticos de Julio Cortázar. Além dos numerosos estudos críticos e edições existentes da obra, observa-se a influência direta que exerceu sobre autores posteriores, que ampliaram e ressignificaram a história original. Em “O Perseguidor” acompanhamos a trajetória de Johnny Carter, personagem inspirado no saxofonista americano Charlie Parker. Carter é um músico de enorme talento que na maior parte do tempo está mais preocupado com seu mundo interior do que com sua subsistência e sua dependência química.
Mais que uma análise, o objetivo desse texto é estabelecer uma leitura paralela de “O Perseguidor” com o “Doutor Fausto”, de Thomas Mann. São obras do mesmo período (foram publicadas em 1959 e 1947, respectivamente) e seus protagonistas são músicos. No “Doutor Fausto”, Mann retrata a decadência de um homem, de uma sociedade e de uma época através da vida do compositor Adrian Leverkühn. Doutor Fausto é o melhor romance já escrito em que a música desempenhou um papel fundamental. Cortázar leu “Dr. Fausto” e ficou maravilhado. O argentino conta em uma entrevista que após ler a obra pensou em escrever algo que evocasse o texto de Mann. Mas, para seu projeto, Cortázar em vez de retratar um ‘intelectual’, utilizou um homem simples, limitado em termos de ideias, uma espécie de pobre diabo possuído por um talento genial e uma contínua ansiedade metafísica.
Carter e Leverkühn compartilham o status angelical, tanto na feição benigna quanto na diabólica. Este último componente é representado pelo pacto demoníaco, algo que se vê claramente no romance de Mann, segundo o modelo faustiano. Na história de Cortázar, implicitamente, também se dá o acordo com o diabo, que consiste em anular os efeitos da história. Enquanto Fausto recupera a juventude, Johnny sai do tempo, vivendo um presente que é tanto futuro quanto passado.
Em ambos os casos, o pacto diabólico atua aniquilando a passagem do tempo e permitindo que o personagem faustiano perca a calma por necessidade histórica: não viver a própria vida apenas uma vez e ficar trancado no presente único, onde o tempo passa e não volta sobre si mesmo. Aparece ainda, de forma oblíqua, uma noção da arte como defesa contra a usura do tempo e um recurso ao mito, que é insistente, eterno retorno, imortalidade (de novo: o faustiano).
Johnny e Adrian têm alguns traços comuns. Eles vivem distanciados de seu corpo, com notório desconforto, desprezam sua materialidade e buscam existir em outro mundo, sem gravidade corpórea, um mundo fantástico cuja imagem menos incompetente é a música. O sintoma comum é o frio. Johnny, desnutrido e trêmulo, alcoólatra e drogado, sente frio, frio semelhante ao sofrido por Adrián, sifilítico.
As referências musicais de “O Perseguidor” são evidentes. Não bastasse a dedicatória a Parker e a profissão do personagem principal, o título sugere um gênero musical, a fuga. O que Johnny está perseguindo é algo que se torna inatingível. É algo inefável ou cujo nome é secreto ou proibido. No “Doutor Fausto”, por sua vez, o esquema musical é de uma sinfonia, um romance que narra, como acontece com as sinfonias, uma vida, compreendida como uma sucessão necessária de etapas que abandonam as outras.
Uma última observação: as duas obras demonstram como a música é um bom exemplo de discurso em relação à literatura. Uma partitura é como o elemento mobilizador da linguagem: seus vazios, sua porosidade, sua abertura, sua indeterminação, suas possibilidades estéticas, sua ambiguidade, enfim, resultam como ótimas representações do imaginário na literatura. Se o “Fausto”, de Mann é o maior romance já escrito tendo a música como leitmotiv, o conto de Cortázar significa o mesmo para a narrativa curta.