Mal vê a luz do mundo, o homem se flagra numa contenda figadal contra o único adversário que jamais irá bater, passem-se duas horas ou um século. A dor de se perceber escravo do tempo, carrasco da vida que fustiga-nos com a morte — de pessoas chegadas e queridas de quando em quando e com a nossa própria, definitivamente —, faz do mais cínico dos verdugos, ou a indesejada das gentes, na pena de Manuel Bandeira (1886-1968), portador de um confortável sofisma que esconde uma promessa qualquer de felicidade, da felicidade possível, uma vez que, como sabe qualquer um que já tenha sorvido da vida o sumo mais doce e se vê instado pela sensatez a esperar uma época de naufrágios inescapáveis, a felicidade é nada mais que a quimera de ser feliz. O estar no mundo é, como na caverna de Platão (428 a.C – 348 a.C), só um arremedo das memórias mais íntimas de cada um, de todos aqueles conceitos eivados de idiossincrasias as mais diversas, as mesmas que nos mantêm mais e mais encafuados em nossos sonhos e delírios, cheios de perigo e poesia.
Realidade das mais incontestáveis dentre os postulados mais indiscutíveis, a ditadura do tempo projeta-se para além de nossa vã filosofia e nossa compreensão tão pouca, e enquanto houver alguma forma de vida que pulse quase muda no caos maravilhoso do universo, sempre haverá de existir. O problema fundamental do homem, sua lástima mais profunda e mais doída, não é o avanço despótico das horas, mas as malogradas tentativas de encontrar um meio, por mais improvável que seja, de fazer-se-lhe revelar o gozo de onde se alastra o desespero; se desvendasse tal enigma, estaria perto de descobrir alguma justificativa para fugir da vida como ela é guarnecido de alguma razão, sempre assolado pela insana necessidade de tudo justificar, calcular, tornar crível, mesmo que saiba que as infindáveis alienações que se atiram diante de nós no transcorrer da vida concorressem todas para nos aprisionar em sua própria loucura, quiçá a experiência mais assemelhada à morte, por fazer-nos ter apenas a compreensão mínima do que se passa em nosso espírito mesmo e no de quem nos rodeia, e ainda assim de forma diabolicamente enviesada.
Nem sempre a substância grossa e densa dos romances dá conta da pluralidade toda da vida, maçaroca de sensações e estímulos, ímpetos e recalques que avança pela eternidade afora e espezinha do menino ao velho, torturando corações já experimentados na mágoa. Um pouco acima da crônica, aquele gênero menor de que falou Antonio Candido (1918-2017), por quase seis décadas a encarnação da crítica literária no Brasil, os contos têm o mágico condão de traduzir em narrativas curtas o espírito do tempo em que aparecem, mesmo que nem sempre (ou também por isso) retratem com fidedignidade cartesiana a época em que saem do prelo. O paraibano Cristhiano Aguiar se vale de elementos da literatura gótica e do folclore para traçar uma espécie de panorama ideal para o futuro que nos espera — e nos ameaça. Em “Gótico Nordestino” (Alfaguara), Aguiar, crítico literário como Antonio Candido, perpassa a história brasileira moderna, indo do cangaço à ditadura militar, emitindo um parecer bastante perturbador sobre o porvir que iremos colher, não muito distinto do horror que semeamos dia após dia. “Gótico Nordestino” foi o livro de contos mais lembrado pelos leitores da Bula, consultados via newsletter enviada por e-mail, bem por meio de interações em nossos perfis no Facebook e no Twitter. O mais recente trabalho de Aguiar e outros nove títulos constam dessa lista, cujas sinopses foram fornecidas pelas próprias editoras. Se você tem sempre um pretexto para deixar para depois a leitura daquele clássico, não raro ligado ao giro incansável dos ponteiros do relógio da vida, aqui estão dez boas pequenas grandes empreitadas em que investir seu exíguo tempo.
Um menino é obrigado a cruzar o descampado perto do vilarejo de Riachão da Frente para levar uma carta que a mãe escreveu a Zé Barbatão, o cangaceiro local. Na madrugada, as sombras no caminho e a ameaça do bando crescem conforme a narrativa avança, e a realidade parece a ponto de se romper. “Anda-luz”, história que abre este volume, prenuncia o que virá nos oito contos seguintes. Em Gótico nordestino, Cristhiano Aguiar caminha entre o sonho e a vigília, dialoga com outros gêneros e compõe um livro totalmente distinto do usual. “Gótico nordestino se insere em lugar de destaque na nova leva de narrativas de horror, reinventando os medos atemporais a tudo que escapa da racionalidade”, escreve Antonio Xerxenesky.
Como podemos comparar um homem que deixou de ser escritor para se dedicar ao ofício de mecânico com uma mulher que viaja em um trem de Berlim para Munique enquanto observa outra passageira comer um ovo, e ainda, com uma menina que não aceita o fato de não ser notada por um colega de classe? Como esses e outros personagens tão diversos podem confluir? Aparentemente, não há nada que nos faça pensar que histórias tão banais possam se interligar, mas, nos dez textos de “Mulher Feita e Outros Contos”, Marilene Felinto usa a simplicidade cotidiana para mostrar ao leitor que a complexidade da vida está ligada de modo íntimo ao ordinário.
Nos onze contos que compõem “Corpos Benzidos em Metal Pesado”, livro de estreia de Pedro Augusto Baía, a unidade narrativa que os une são as vivências da região norte do Brasil, em todas as suas facetas: a floresta, os indígenas, a industrialização, a precarização das cidades, a violência com os desfavorecidos, a desigualdade, a comunhão com a natureza. Os protagonistas são uma vítima do garimpo, um imigrante da região Norte que é confundido com um boliviano na Europa, um repórter que investiga uma vítima quilombola, uma fotógrafa que sofre um ataque de pânico em uma cidade alagada, um massacre numa seção eleitoral dentro de uma aldeia indígena, um homem contaminado por metal pesado, fruto do garimpo, entre outros. Porém, embora as histórias de “Corpos Benzidos em Metal Pesado” sejam repletas de conflitos e violência, são as relações de afeto, os elos que tecem a resistência, que se evidenciam, podendo conter tanta ternura e inocência como quando uma menina, no conto “Carne de boi”, sente vontade de perguntar ao irmão “como um rio limpinho consegue morar dentro de uma palavra tão pequena”.
Crítica social, referências a ancestralidade africana, pesquisa história, ironia, insurgência poética e um cuidado com o enriquecimento humano dos seus personagens marcam a prosa dessa escritora carioca. Os seus personagens não estão soltos nos vãos da história, nos espaços invisíveis aos quais as vivências negras quase sempre foram relegadas, muito ao contrário, eles estão intimamente comprometidos com a vida e o tempo, iniciados em terreno ficcional bem elaborado. Eliana Alves Cruz tinge um rico painel do Brasil de ontem e de hoje, do país que não se move em questões que são centrais para a maioria de sua população. Ao desenhar essa paisagem, Eliana não se desvirtua, em nenhum momento, do que é essencial na sua atuação como escritora de literatura, nos oferecer bons enredos, finamente elaborados, desenvolvidos com inspiração, técnica e talento, que seduzem os leitores em intensa fruição literária.
Livro ficcional de estreia do jornalista e crítico Mateus Baldi, “Formigas no Paraíso” apresenta contos fortes e provocativos que prescrutam a alma do cidadão contemporâneo dos grandes centros urbanos, mesmo tendo como cenário o desmistificado Rio de Janeiro. Como diz Noemi Jaffe na orelha do livro: “Pode-se ter a impressão de que eles, no conjunto, constituem uma galeria de tipos cariocas, marcados pela realidade urbana difícil e pela dinâmica absurda da economia e da sociedade brasileira, mas é mais do que isso. Cada um deles tem uma tal singularidade e profundidade em sua aparição, que, mais do que galeria, estamos diante de pessoas que, eventualmente, poderiam até se conhecer e se entender…”. Além da temática e da abordagem o estilo cortante de Baldi salta aos olhos e nos arrebate em seu ritmo, velocidade narrativa, diálogos precisos e domínio da técnica da escrita.
O magnetismo inicia-se no título: “Breve Segunda Vida de uma Ideia”. Pousa na apresentação, “Preâmbulo magnético explicativo”, espécie de bastidor do processo criativo de Solemar Oliveira. E dissemina-se textos afora. Uma listra negra transmuta-se em personagem e age como se humana. Um cão falante. A leitura de cada conto, do início ao fim, impacta o leitor como se ele navegasse nas águas de um rio de correntezas e abissos, ciceroneado por sustos e assombros, no confronto com a dimensão do caos. Atual, metaforicamente refinado na crítica sociopolítica. Narrativas curtas, bem tramadas. Descrições tecidas com fios poéticos ou farpados. Contos fantásticos, em toda a acepção da palavra. Expressivas prosopopeias, hipérboles, sinestesias, malabarismos linguísticos, semânticos, ironias, críticas. O inverossímel quase crível. O místico em conluio com o mítico.
Frederico Klumb evoca uma noção de que seus personagens sempre estão flertando com o abismo, mas sem necessariamente cair nele. Não é somente na própria base temática escolhida, mas na técnica adotada: nela, as frases curtas e diálogos cortados fazem um caminho híbrido sob o recurso de fluxo de consciência, monólogo e interação ativa e passiva das personagens. Os primeiros elementos posicionados recordam nomes conhecidos dessa literatura, a exemplo de Samuel Rawet, Alfredo Bosi e Silvina Ocampo, escreve Lorraine Ramos Assis, em resenha publicada na Revista Cult. “Laura ficou ali por mais algum tempo, terminando uma última garrafa de vinho, olhando o fogo crepitar e o céu escuro acima da sua cabeça. Depois de coisa de meia hora, viu uma espécie de luz verde, num matagal a cinquenta metros da cabana. Levantou, foi andando em direção ao matagal.”
Histórias vibrantes, nas quais indígenas e não-indígenas entrelaçam-se em tramas originais e surpreendentes, que revelam a diversidade cultural, a argúcia e a beleza dos povos originários. Personagens imortalizadas pelas boas histórias passeiam em danças circulares ou relaxam ao som de uma sonata de Debussy. Histórias de grandes xamãs indígenas compartilham o mesmo espaço com Merlin e o rei Arthur, em uma harmonia serena, agasalhadas categórica e respeitosamente pelos autores, revelando suas experiências com povos indígenas. “Atenção: esta não é obra de ‘realismo mágico’. Aqui nada é sobrenatural. Trata-se da invenção de nova ‘ficção científica’. Realismo total. Contos do encontro/confronto de tudo isso. Leitura perigosa/deliciosa: quem lê pode realmente virar onça”, escreve Hermano Vianna.
O jornalista Edney Silvestre, notório por seu vigor narrativo, retrata, em sua nova obra, “Pequenas Vinganças”, diferentes momentos do passado do Brasil em tramas envolventes, divididas em duas novelas e sete contos inéditos. Com uma escrita emocionante, o autor ancora seus personagens nas muitas situações formadoras da nossa nação. O Livro abarca as atrocidades racistas da Guerra do Paraguai, passando por um mergulho na frívola elite da ditadura Vargas e na indiferente alta-sociedade durante a ditadura militar. O autor também retrata a violência contemporânea que aflige inocentes, a pandemia que se abateu sobre o planeta em 2020. A obra é um caleidoscópio de retratos da sociedade brasileira em suas diversas classes, cores, sotaques e idiossincrasias.
O livro de estreia de Lívia Machado é uma vertigem. Diferentes imagens, situações e tramas se multiplicam e criam um universo povoado, intenso e poético. Lívia inventa mundos. Seus contos às vezes revisitam eventos a partir de um olhar singular, como um grupo de adolescentes em um sótão que especula sobre o futuro de uma época em que ovelhas eram clonadas e uma princesa morria em um túnel ou então a chegada da internet em uma cidade do interior de Minas Gerais “e sua grande orquestra sonora de conexão”. Também podem ser feitos de acontecimentos sobrepostos que embaralham nossa percepção do tempo e do espaço e produzem um choque feito de instabilidade e beleza, como um acidente de carro em uma estrada e a verdade vista nos olhos de uma vaca ou uma visita da morte que brinca com os gatos e uma estalactite que mora dentro de uma biblioteca. Todos esses acontecimentos fazem vacilar a realidade, e quando a leitura termina vislumbramos, com inquietude, quantas vidas podem caber dentro dessa. Isso já não seria pouco, mas sua escrita vai além e nos traz de volta algo valioso e que costumamos esquecer: a capacidade do espanto diante dos menores acontecimentos, e a de poder dançar no meio de uma turbulência.