Ganhador de 7 Oscars, filme com Meryl Streep, na Netflix, é uma das mais belas histórias de amor do cinema Divulgação / Universal Pictures

Ganhador de 7 Oscars, filme com Meryl Streep, na Netflix, é uma das mais belas histórias de amor do cinema

Ninguém ama impunemente. O verdadeiro leva muito tempo para se realizar em plenitude, o que significa passar por cima das próprias vontades — por mais certo que se possa estar — bater de frente com as opiniões e conceitos ditos certos, abdicar dessa mesma certeza em nome do que o outro considera imprescindível à felicidade, sua e do casal, ainda que, novamente, se saiba muito bem aonde levarão os sonhos de que nascem mortos, sem qualquer chance de vingar, de um e do outro. No momento em que compreendem, não sem muitas batalhas contra os moinhos de vento que foram construindo ao longo de toda uma vida, que o propósito de estarem juntos é descobrir o que, afinal, os mantém irremediavelmente unidos, lutando para dar novo ímpeto ao que têm em comum e se pôr a salvo de fantasias pueris sobre amor eterno e tórridos folguedos de alcova para além da idade adequada, os cônjuges e, por que não?, da mesma forma os amantes, esses dois elementos que acabam por virar um único ente às vistas da sociedade — malgrado ninguém se sinta à vontade de o admitir — dispõem de uma possibilidade infinitamente  maior de serem felizes, por mais que esse ínterim de ventura e remanso em meio ao eterno turbilhão que é a vida nunca se apresente. 

Não é razoável que alguém encerre uma longa jornada na Terra sem ter amado. Pode-se morrer sem a experiência do amor carnal, por óbvio, mas o amor, ou a ilusão do amor — o que acontece com mais frequência — é tão vital para o homem que sempre encontramos um resquício qualquer de sanidade na loucura dos amores que nunca ganham vida, justamente porque contentam-se em envenenar a alma eterna dos que ousaram se perder no mais belo sonho que se pode sonhar. Sydney Pollack (1934-2008) era um homem dado a celebrar o amor. Nos 42 filmes que rodou, o diretor sempre achava um jeito de destacar o envolvimento amoroso de seus personagens, dando ênfase a tudo quanto pudesse haver de absurdo, de flagrantemente ilógico e mesmo de destrutivo no sentimento que define a natureza humana, que a diferencia de qualquer outra espécie, que a salva e que a condena. “Entre Dois Amores” é a história de uma mulher que tem em si a vontade de amar de muito mais pulsante que a própria vivência do afeto, o que, por óbvio, não é sua culpa, afinal ninguém pode amar sozinho: pode-se, no máximo, se ansiar pelo amor de que se crê digno.

Tal como Pollack, a dinamarquesa Karen Blixen (1885-1962) creu no amor como poucos. Muito a frente de seu tempo, um tempo em que mulheres nunca manifestavam suas verdadeiras intenções, muito menos em público e tanto pior se se referissem às necessidades do corpo e do espírito, Blixen era um barco à deriva em busca de um porto seguro. Kurt Luedtke dá inúmeros sinais da instabilidade fundamental da protagonista, em frases sobre as quais o diretor projeta um telescópio, capaz de atravessar as palavras e chegar ao coração volúvel dessa figura, cheia de tanto amor e, por paradoxal que soe, dotada do raro dom de manter longe seus pretendentes. A própria Karen Blixen é quem confirma essas impressões, por meio das notas que tomava e arquivava num diário, caudaloso o bastante para gerar “A Fazenda Africana” (1937), de onde saiu “Entre Dois Amores”, e “Sete Narrativas Góticas” (1934), relatos em que questiona o moralismo hipócrita da elite de seu tempo, sobretudo o dos homens, a quem nunca se submeteu, embora, claro, temesse o julgamento de quem não a conhecia e nem fazia caso de o fazer. Esse foi o motivo central de sua ousada proposta, de que o filme de Pollack faz um recorte ampliado e o analisa à luz da sociologia e do pensamento filosófico. Algo aflita por permanecer solteira, já beirando os quarenta, Blixen laça Bror, o irmão de seu amante vivido por Klaus Maria Brandauer, aristocrata falido. Tudo o mais que se desenrola na sequência, da mudança para o Quênia, na África Oriental, com a Grande Guerra (1914-1918) em pleno curso, a fim de cultivar café nas encostas do Kilimanjaro mesmo sendo de uma família criadora de gado leiteiro — o diretor repisa essa subtrama a dada altura do enredo, no intuito exitoso de aclarar melhor a melancolia por trás de uma vida à primeira vista radiante —, à lenta dissolução do matrimônio com Bror (e por conseguinte de sua própria identidade) vem nesse empuxo.

Gloriosa como sempre, Meryl Streep dá a necessária profundidade dramática a Blixen, sendo capaz de iluminar a atuação tipicamente forçada de Robert Redford como Denys Finch Hatton, com quem vive o outro romance da história. Elementos como a colonização do Quênia pelo Reino Unido e a abordagem, sutil, da baronesa Blixen como a salvadora branca do povo que ajuda a explorar são incluídos em doses homeopáticas, sem prejuízo do arco central, que, quer mesmo é contar um caso de amor e desespero. E conta.


Filme: Entre Dois Amores
Direção: Sydney Pollack
Ano: 1985
Gêneros: Romance/Drama
Nota: 9/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.