No acervo da Netflix, uma das peças mais interessantes é o filme “Esperando os Bárbaros” (2019), de Ciro Guerra. As estrelas Johnny Depp e Robert Pattinson são chamarizes de público para a adaptação de um dos melhores romances do final do século 20: “À Espera dos Bárbaros” (1980), do sul-africano J.M. Coetzee, ganhador do Nobel de Literatura em 2003. Ver a versão para o cinema é a via de acesso a um universo que herda questões centrais para as artes, o pensamento e o mundo contemporâneo.
O filme traz o atrativo de ter o roteiro assinado pelo próprio Coetzee, ou seja, as imagens representam um passo a mais para essa história extraordinária. Ganham sentidos, cores, concretude, as palavras do juiz narrador do romance — interpretado por Mark Rylance na tela. Ele está numa fortaleza de fronteira, no meio de deserto longínquo, e funciona como o representante da ordem no local. A edificação é cercada por um assentamento de pessoas, obviamente em situação precária e com certos traços de tradicionalismo.
A única coisa que “perturba” o ambiente são os nômades da região, os bárbaros do título. Eles têm aparência dos povos jamais compreendidos pelos europeus (o “outro”) que podem ser imigrantes ou refugiados (como no recente filme “As Nadadoras”, também da Netflix). São figuras que amedrontam os ditos civilizados e devem ser mantidos sempre do outro lado da fronteira. O juiz (o magistrado) controla esse local até a chegada de um enviado pelo governo central, o coronel Joll (interpretado por Johnny Depp).
A figura de Joll representa a chegada dos civilizados, com seus exóticos óculos escuros, roupa impecável, barba sempre feita. Sua missão é inspecionar a quantas anda a região da fortaleza. Nesse ponto, como na boa da tradição do colonialismo europeu, o civilizado é quem traz boa parte da barbárie e da violência. No livro, o narrador de Coetzee faz uma observação exemplar: “De que adianta o dono da loja dar o alarme quando os criminosos e a Guarda Civil são as mesmas pessoas?”. Joll é o chefe dos guardas.
Após as barbaridades cometidas por Joll, o magistrado começa o trabalho de reparação, ajudando uma “bárbara” por quem se sente atraído. Um senso de Justiça, de humanismo, bate fundo na consciência do personagem que é um anotador compulsivo de tudo que se passa no local. Ele decide levá-la de volta para os seus companheiros nômades. O ato, porém, será devidamente punido por Joll e seus sucessores do governo central. Um dos grandes momentos do filme é o interrogatório de Joll com o magistrado.
Chão histórico
O que mais chama a atenção em “Esperando os Bárbaros” (no livro e no filme) é a aparente falta de traços realistas de tempo e espaço. O leitor e o espectador ficam sem referências imediatas. Onde se passa aquela história? Qual o ano da ação? Quem são os bárbaros e colonizadores? Essa descaracterização foi a obra de gênio de Coetzee, que recorreu a uma tradição literária de altíssima qualidade e ao chão histórico da África do Sul, sob o regime de Apartheid nos anos 1970 e de intensa censura contra obras e artistas do país.
No livro “J. M. Coetzee and the Life of Writing: Face-To-Face with Time” (2015), David Attwell reconstituiu o processo de criação das obras do escritor sul-africano (hoje cidadão australiano). O autor é tão meticuloso, ao ponto de guardar seus rascunhos e de fazer diários completos sobre o andamento da escrita dos livros. O romance “À Espera dos Bárbaros” começou a ser redigido, por exemplo, no dia 11 de julho de 1977, quando Coetzee sofria um processo de censura contra o livro “In the Heart of the Country”.
E para driblar os censores, nada melhor do que uma narrativa alegórica, sem menções diretas à política da África do Sul. A princípio, segundo Attwell, Coetzee imaginou uma história pós-apartheid com os brancos sul-africanos se refugiando na Ilha de Robben (local da prisão de Nelson Mandela), de onde escapariam em navios das Nações Unidas. A versão final transformou a ilha na fortaleza no meio de lugar nenhum, um deserto tomado por nômades com traços de mongóis que são fantasmas contra os civilizados.
O título do livro, Coetzee foi buscar num clássico poema do grego Konstantinos Kaváfis: “O que esperamos no ágora reunidos?/ É que os bárbaros chegam hoje/ (…)/ Sem os bárbaros o que será de nós?/ Ah! eles eram uma solução”. Civilizados sempre precisam fabricar a imagem dos bárbaros, dos inimigos, para invadir e ocupar um espaço. Mas essas figuras rejeitadas jamais são uma ameaça de fato e servem, na verdade, como justificativa para a violência colonial. Podem ser hoje indígenas, africanos, asiáticos.
Outra fonte de Coetzee foi o romance “O Deserto dos Tártaros” (1940), do escritor italiano Dino Buzzatti. Neste livro, o personagem central é o oficial Giovani Drogo, enviado para uma fortaleza de fronteira onde dizem haver uma ameaça de invasão. Ele vai esperar que algo aconteça ao longo dos trinta anos seguintes — e nada ocorre naquele fim de mundo, a não ser os fantasmas de que estrangeiros vão invadir e barbarizar. Trata-se, no fundo, de uma longa espera pela própria morte, sem emoções ou grandes guerras.
A espera do personagem Drogo e a do magistrado de Coetzee é a fantasia do fim dos tempos. Trata-se (essa fantasia) de um dos fundamentos da paranoia — um traço muito presente na crença de que os bárbaros podem invadir de uma hora para outra o nosso espaço, a nossa fortaleza. Ser invadido representa a “morte da civilização”. Assim, o inimigo deve ficar sempre do outro lado da fronteira. E no caso da África do Sul, o pânico dos civilizados era o fim do regime do Apartheid.