Dê uma chance e irá se surpreender: filme subestimado na Netflix vai acalmar sua alma e te fazer acreditar em recomeços

Dê uma chance e irá se surpreender: filme subestimado na Netflix vai acalmar sua alma e te fazer acreditar em recomeços

Descobrir-se superior que a maioria das pessoas comuns que enchem o mundo com sua parvidade megalômana; seus arroubos de falsa modéstia, muito bem disfarçada de caridade, simpatia, empatia ou qualquer outro bom sentimento, miseravelmente conspurcado pelo lodo da hipocrisia; seu dom quase cartesiano de encaminhar os acontecimentos ao sabor das conveniências da hora, não é, claro, o que se pode definir por vantagem. Contudo, é justamente asfixiada por essa onipresente sensação de um vazio incansável que a maior parte das pessoas crê no absurdo de que tudo pode ser incluído na conta do talento, atributo sobrenatural com que a natureza, injusta, elitista e cruel, regala poucos, pouquíssimos. Encontrar essa substância mágica que nos dá a chance de que nos elevemos do chão do banal, do ordinário, da condição humana mesma e nos recubramos de uma aura mística qualquer, não exatamente metafísica, nem muito menos transcendental, mas enérgica o bastante para nos fazer subir do estado de vis pecadores para um híbrido de santo, feiticeiro e mártir, que arrebanha, catequiza e encanta multidões, não sem boa dose de um fanatismo obscurantista, muito a propósito dos dias ignaros que correm.

O sentimento de fracasso é, sem sombra de dúvida, um dos venenos mais mortíferos para o vaidoso espírito do homem. Contudo, ao cabo de tantas desilusões, existem aqueles que simplesmente deixam de se importar, como se não fosse possível qualquer margem para avançar, como se a vida congelasse, não por um momento de desdita mais severa, mas para sempre, até que, como sempre sói acontecer, o destino arme uma de suas grandes (e maravilhosas) falsetas. Talvez artistas sejam particularmente suscetíveis àqueles momentos em que a vida passa a oscilar — muito mais para baixo que para cima —, arrebatada pelo movimento que ela mesma dispara e que não é capaz de sofrear. Esse é um dos argumentos de que Rachel Winter dispõe em “Aquilo Que Nos Separa”, sem pesar a mão ou glamourizar eventuais falhas de seu excêntrico protagonista, um roqueiro das antigas, refém de uma glória restrita a tempos mortos.

Winter aproveita extrai o melhor do texto de Will Aldis, sobre um astro do rock, datado, casmurro, melancólico, mas sobretudo digno, conformado com o que a sorte lhe reservara — até porque foi ele mesmo quem o quis. Cada elemento no filme obedece a uma liturgia bastante específica, em que o pouco ânimo para a exploração dos tipos apresentados é compensada pelas atuações que até passariam por triviais, mas que de tão buriladas superam qualquer possível má vontade inicial. É precisamente o que se pode dizer da performance de Kelsey Grammer como Micky Adams, o esquisitão que derrete corações com sua franqueza a toda prova, muito bem guarnecida de notas que misturam na justa proporção filosofia e comentários mordazes sobre a indústria cultural. Micky foi um músico de sucesso estrondoso em meados dos anos 1970, mas passados vinte anos, ninguém mais quer saber dele — ou melhor, todos continuam a não querer saber dele. Aldis saca da manga uma solução um tanto esquemática a fim de tornar razoável a volta do personagem de Grammer ao centro das atenções (pelo menos no que diz respeito a assuntos colaterais): é aí que entra em cena o ambicioso postulante a novo manager de uma importante gravadora — no tempo em que, primeiro, um único homem detinha poder absoluto sobre a carreira de um vasto plantel de artistas, todos devidamente amarrados a contratos muitas vezes escorchantes, quiçá uma das várias explicações para o sumiço dessas fábricas de nulidades. Ao que Micky tem de flagrantemente brioso, adornado por uma honestidade autodestrutiva, o Charlie Porter vivido por Jackson White responde com ganância, cinismo e um fôlego para a subida muito presente nos canalhas. Até que uma providencial reviravolta os iguala.

A trilha sonora, quase toda a cargo de Rivers Cuomo, líder do angelino Weezer, estourada em 1992, é uma das cerejas mais suculentas no topo desse bolo musical — e a certa altura o espectador se lamentará de não ver um revival de Micky entoando esse repertório, em vez de se flagrar tendo de engolir em seco a xaropada pseudo-romântica entre Charlie e Julia, a filha do personagem central interpretada por Julia Goldani Telles. Noves fora, o saldo é bastante positivo, e “Aquilo Que Nos Separa” é uma alegoria, persuasiva e de genuíno realismo, sobre o que disse outro maluco-beleza como Micky, esse brasileiro, quanto a se tentar outra vez.


Filme: Aquilo Que Nos Separa
Direção: Rachel Winter
Ano: 2021
Gêneros: Comédia/Drama
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.