Existe na natureza de toda criatura uma fração ambivalente, dotada de luzes e sombras, tão cheia de arestas e de reentrâncias, de escarpas e precipícios, que nós mesmos raramente nos aventuramos a ir até lá, ou por temor dos monstros horríveis que hão de nos receber — e em todos eles se destaca algum traço de nossa fisionomia —, ou pela crença tola de que jamais teremos a mais pálida necessidade de nos abalar do alto de nossas certezas para o porão mofado de velhos erros que o espírito tenta ocultar. Ficam nesse lamentável espaço as barreiras com que conseguimos nos manter a salvo da curiosidade quase sempre nefasta de quem nos rodeia, mas esperando que num momento qualquer engulam-nos as situações em que o cerco se fecha, de um modo tão pronunciado que chegamos a supor que a força do pensamento nos transportou para uma espécie de universo paralelo, terra mágica e perigosa governada por um soberano perverso, a quem temos de prestar contas de todas as emoções, mormente das mais tacanhas; de todos os planos, em especial dos mais vis; de todas as vontades, inclusive das nunca tornadas concretas.
Ainda nesse movimento, numa fase em que já não nos podemos dominar mais, ganha força uma espiral de perigos e ameaças que não pertencem ao mundo físico. A vida começa a se assemelhar mais a um sonho, a um pesadelo mais e mais realista em que as memórias que nos torturam, as representações da infelicidade nossa de cada dia, as lembranças de um passado violentamente tétrico agarram-se ao muito pouco que nos sobra de razão, tesouro de valor ainda mais inestimável frente a alucinações de toda ordem. Num tempo em que somos tomados pela necessidade de contar com heróis e heroínas que tenham o condão de nos regalar com a desejada salvação, nos descobrimos vítimas de um enredo diabólico que nós mesmos escrevemos, e que cujo desfecho, claro, não pode ser feliz. O espanhol Oriol Paulo tem tarimba em apresentar narrativas em que a audiência se questiona sobre o que pensa estar absorvendo da história, tão densa a atmosfera de enigma que prima por empregar em seus filmes. No recém-lançado “As Linhas Tortas de Deus”, o diretor não tem cerimônia quanto a acionar sua cornucópia de polêmicas, todas muito bem embaladas por uma trama muito bem conduzida e muito bem ancorada na performance de uma das grandes estrelas do cinema hispânico atual.
Há alguma semelhança entre Alice Gould e Laura Vidal, as protagonistas vividas por Bárbara Lennie aqui e em “Um Contratempo” (2016), quiçá o thriller mais envolvente de Paulo até então, mas o que as une mesmo é o que têm de mais particular. O texto do diretor, Guillem Clua e Lara Sendim preserva a riqueza descritiva de Torcuato Luca de Tena, em cujo livro o filme se inspira, mas nota-se um esforço, bem-sucedido, por deixar o andamento mais fluido, mérito em boa parte, por evidente, de Lennie, conhecida e admirada graças a seu talento mais instintivo que propriamente técnico. É mesmerizante o domínio que a atriz revela sobre sua personagem, uma detetive empenhada em desvendar um homicídio, a tal ponto que submete-se à internação no manicômio onde se desenrola quase todo o enredo, palco onde o crime teria se passado. À medida que a história toma corpo, vai-se tendo uma ideia bastante nítida de que nem tudo o que se vê corresponde ao que o filme quer transmitir, jogada de rara perspicácia do diretor que, com um ou outro ajuste, nos remete ao personagem de Leonardo DiCaprio em “Ilha do Medo” (2010), dirigido por Martin Scorsese — este, aliás, é um dos grandes pontos fracos neste trabalho do espanhol: a partir do momento em que Alice envereda pelo transtorno de múltiplas personalidades, mais desabrido a cada sequência, é impossível esquecer a atuação de DiCaprio, malgrado, frise-se, Lennie seja capaz de forjar o papel a seu talante, imprimindo muita personalidade a essa mulher, no fundo uma grande vítima de si mesma, uma linha torta em que Deus, sempre irrepreensível, despeja seus laivos de imperfeição.
Filme: As Linhas Tortas de Deus
Direção: Oriol Paulo
Ano: 2022
Gêneros: Drama/Mistério
Nota: 8/10