A fantasia é uma necessidade. Entre seus tantos e salvíficos papéis, a arte se propõe a servir de ponte, primeiro do homem para si mesmo, de onde se consegue empreender viagens muito mais elaboradas, para destinos cujo estranhamento inicial dá lugar à identificação quase súbita com circunstâncias que nos são recorrentes, ainda que não as possamos admitir nunca, sequer para nós mesmos, nem casos extremos. Só depois desse contato com o que há de mais denso, com o que há de mais obscuro e assustador em nossa própria essência, existe alguma chance de nos perdermos com menos frequência na complexidade maravilhosa e sufocante de nossa humana — e, por conseguinte, limitada — condição, e em paralelo a esse dispendioso processo, contínuo, moroso, sem fim, ir começando, aos poucos, com toda a cautela, a aventura da vida e da conquista possível do mundo que nos cerca, território mágico de singelo lirismo, cujas dimensões fazem questão de superar nossas expectativas, das mais pedestres às mais delirantes, maior que o universo que o contém ou a metade da metade de nossas miudezas mais reles.
Quanto mais se vive mais se deseja encontrar alguma justificativa para se fugir da realidade, como se as infindáveis alienações que se atiram diante de nós no transcorrer da vida concorressem todas para aprisionar o homem em sua própria loucura, quiçá a experiência mais assemelhada à morte, por fazer-nos ter apenas um vago entendimento do que se passa conosco e com os que nos rodeiam, e ainda assim de forma malignamente enviesada. Contudo, ninguém é capaz de atravessar a vida sem seus quinze minutos de loucura, sob pena de sucumbir ao primeiro baque — e hão de ser vários ao longo do caminho, por mais curto que ele se apresente. Muito do que o homem sonha, uma grande parte da natureza de sua insânia, mesquinha ou grandiloquente, comunica-se de modo direto com suas reminiscências mais íntimas e, estas, por evidente, apontam para os que partilharam conosco algum trecho da estrada, até o destino resolver que era hora de dar o jogo por findo e embaralhar as cartas mais uma vez.
Guillermo del Toro é um mestre em chacoalhar as certezas de quem prestigia seu trabalho. Em quase quarenta anos de carreira, o mexicano escalou o olimpo dos grandes diretores do cinema contemporâneo com garbo, sem menosprezar a concorrência, mas muito seguro de seu talento e do que queria representar. Hoje, quando se fala em Del Toro, pensa-se incontinente naquelas histórias plenas de uma maravilhosa hediondez, que tratam logo de reduzir a pó a hipocrisia e a burrice de quem alardeia aos quatro ventos sua justiça, suas boas intenções, seu bom-mocismo, todas essas meras camadas de um verniz xexelento, que mal esconde a perversão das emoções calculadas. Com sua versão para “As Aventuras de Pinóquio”, romance do jornalista e escritor florentino Carlo Collodi (1826-1890) escrito em 1881 e publicado dois anos depois, o diretor confirma seu intento de continuar subvertendo as ilusões de seu vastíssimo público, proporcionando novas dúvidas em vez das fáceis respostas pelas quais muitos anseiam.
As criaturas inventadas por Del Toro — ou ressignificadas, como Pinóquio — não apenas encantam e desencantam ao sabor do que se passa na tela, mas vivem, com tudo de lindo e macabro a que isso remete. A facilidade com o diretor transpõe ideias as mais inusitadas, primeiro da cachola para o papel e daí para inúmeras experimentações antes de tomar sua forma cabal, ajudado, naturalmente, por uma constelação de profissionais de gabarito —casos dos editores Ken Schretzmann e Holly Klein e de Mark Gustafson, o nome por trás das mais sofisticadas animações dos últimos trinta anos, e que assina a direção final com Del Toro —, talvez seja a responsável por prender o espectador por mais de duas horas e meia, com direito a mais meia hora de um making of em que se destrincha a confecção altamente tecnológica de “Pinóquio”, sem prejuízo do artesanato, de que o bom cinema, sobretudo nesse gênero, não prescinde.
Novidades nem sempre vêm chanceladas pelo selo da relevância artística — e de uns tempos para cá, uma coisa é quase a antítese da outra —, mas na versão de Del Toro para a história de Collodi, a partir de seu muito bem amarrado roteiro, em parceria com Patrick McHale, desvelam-se elementos perturbadoramente inventivos, como incluir, de um jeito bastante orgânico, a eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), com a ascensão de um Mussolini aparvalhado diante de um boneco de madeira que diz num palco as verdades que condenavam humanos ao degredo e à morte. A dublagem de Tom Kenny dá esse sabor de novidade, sem que se arrede um milímetro daquele velho conto sobre o eterno desajuste da relação entre pais e filhos. Eis um filme que já nasce clássico.
Filme: Pinóquio por Guillermo del Toro
Direção: Guillermo del Toro e Mark Gustafson
Ano: 2022
Gêneros: Fantasia/Aventura/Musical
Nota: 10/10