Comprei “A Chave de Casa” em uma banquinha no Rio de Janeiro. Banquinha mesmo, daquelas pequenas, mas com livros conservados e baratos. Paguei 10 reais pelo meu exemplar. Juro que não conhecia a autora e não sabia nada sobre o título. Achei a capa bonita, com a franja de um tapete na margem inferior. Ainda bem que ninguém colocou uma chave como ilustração principal.
O nome do livro, aliás, aparece diminuto lá em cima. Seria mentira se eu dissesse que a tarja que anuncia os prêmios que o livro ganhou não influenciaram minha decisão de compra. Prêmio São Paulo de Literatura 2008. Prêmio Jabuti 2008. Finalista do Prêmio Zaffari & Bourbon de Literatura 2009. A gente fica impressionado com essas coisas.
O que me convenceu foi a primeira frase da narrativa (não bastasse uma piscadinha com Emily Dickinson no preâmbulo): “Escrevo com as mãos atadas”. O que me levou para o livro daquele russo, não aquele que todo mundo cita quando o assunto resvala para as melhores aberturas de romances, a respeito das famílias que são felizes ou infelizes ao seu modo, mas aquele hipocondríaco, que abre sua história dizendo: “Sou um homem doente. Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado”.
É difícil escrever de mãos atadas. “Escrevo sem poder escrever e: por isso escrevo.” É o que diz Tatiana Salem Levy em sua estreia. Só agora mencionei o nome da autora, como se não importasse ou fizesse diferença. Imagina. Ela tampouco é generosa em dar muitos nomes aos seus personagens, como se não importasse. E somos levados a pensar (nós, leitores) que ela fala de si mesma. Que a Tatiana escreve sobre a Tatiana. Quem sabe em que medida? Só ela para nos dizer.
“A Chave de Casa” é sobre uma chave sem casa e, portanto, uma chave sem fechadura onde se encaixar. Não é uma imagem simples da solidão? Da falta de propósito? No sentido de que houve uma casa com uma porta que seria aberta pela chave? Se não há mais, estamos diante do passado, da lembrança, da memória, do que foi vivido e pode ser recriado. Ao mesmo pela escrita. De várias formas.
Como escreve de mãos atadas, Tatiana ou a personagem da Tatiana escolheu uma escrita difícil e complicada, que deve ser estruturada sobre tudo o que deixou de ser e passou a ser de um jeito diferente. E, de fato, o que encontramos em “A Chave de Casa” é um ensaio da felicidade entrecortada pelo exílio, pela partida, pela despedida, pelo rompimento. Em capítulos breves, que às vezes não ocupam a metade da página.
Então tudo é rápido e veloz? Tudo é fugaz na sua permanência inventada para dar contorno às coisas e à vida. Tudo é variado, fragmentado, partido. A gente se perde na confusão de vozes intercaladas, de sentimentos encavalados, na simulação de um caos, de variações delirantes. Muitas passagens de “A Chave de Casa” me deixaram sem fôlego, boquiaberto e aflito. Ao mesmo tempo em que tudo é sofrimento, porém, tudo é suave. Uma âncora nos puxa aos infernos desconhecidos. Mas há um flanar que nos ilumina com uma sensação de leveza.
Entre idas e vindas, geográficas e emocionais, descobrimos que todas as vozes, no final, eram uma só nas suas descobertas e carências. É chegando ao fim que amarramos as pontas, na medida do possível, sem que haja uma redenção ou uma catarse. Com a visão do caminho traçado, o primeiro impulso é começar de novo. Agora com a certeza de que conhecemos um pouco mais da trama, como se enfim tivéssemos a chave, senão da casa, do enredo. E pudéssemos tomar a decisão acertada de afirmar: eu vou reler este livro. Ainda que ele nos atinja com uma dor pungente. Bem no meio da fuça.