A arte tem uma única e exclusiva função: incomodar. Tudo o mais que se diga sobre preparar o homem para o futuro; instigar-nos a consciência de fazer parte de um só todo, de um organismo infinitamente maior e mais poderoso que a matéria; fazer-nos mais agradáveis aos amigos; transformar-nos em cidadãos mais proativos, que pouco esperam do meio cada vez mais hostil que nos cerca, arregaçam as mangas, vão à luta e saem em insana defesa de seu país, querendo, por fim, mudar o mundo, toda essa baboseira ilude-nos, leva a crer, até certa altura da vida, de que somos mulheres e homens como nunca houve no planeta, quando, na verdade, não somos nada mais que presunçosos, tolos, vaidosos, quase sempre muito mais do que aqueles a quem tanto condenamos. Quanto mais incômoda, mais salvífica a arte é, em todas as suas mais diversas manifestações; quanto mais arte, maiores as chances de o gênero humano abandonar, mesmo que temporariamente, sua natureza autodestrutiva, sua pulsão de morte, seu esmorecimento paralisante, sua tristeza fundamental, e tentar um outro caminho. E não obstante todo o empenho, toda a dedicação, toda a luta renhida, todo o som e toda a fúria, a promessa de conversão, de mudança de vida, de plenitude que a arte encerra pode, simplesmente, dar em nada.
Não é propriamente fácil tentar corresponder ao que podem esperar de nós todos aqueles que não nos conhecem e assim mesmo arvoram-se em nossos advogados ou juízes, mas é escandalosamente melancólico fazer da vida uma mercadoria ordinária, a ser comprada ao preço mais vantajoso pelo primeiro que aparecer — e os primeiros que aparecem são sempre tão óbvios em sua vileza, tão escancarados em suas terceiras intenções, que a mínima graça que a transação pudesse ter queima-se por si mesma. Inadequações são especialmente comuns naquelas quadras da vida em que tudo quanto se tem é pouco mais que o ímpeto de continuar, de não desistir, em que pesem impedimentos os mais austeros. Cenários assim são dotados de uma ambivalência perigosa: ou prestam-se à variável que faltava para uma genuína metamorfose, ou sepultam de uma vez por todas qualquer anseio por um futuro.
Artistas são célebres até o ponto em que a pedestre humanidade os rebaixa ao nível dos homens comuns, o que acontece desde que o mundo é mundo, e há de acontecer sempre. A antimocinha de “Qala” é uma dessas divas malditas, desde o útero. Essa mulher atormentada, tipo inconstante à deriva entre o bem e o mal, criação da diretora indiana Anvitaa Dutt Guptan, não se furta a passar por cima de quem ouse se interpor entre ela e os planos que entende justos. Mas suas influências não foram das melhores. Qala, composição densa, caudalosa, irretocável de Tripti Dimri, uma cantora de thumri, gênero musical popular na Índia, vive para agradar Urmila, de Swastika Mukherjee. O texto e a direção de Guptan insinuam que a protagonista vira uma refém dessa mãe superprotetora e tirânica, porém a interpretação de Dimri desvela aos poucos a maldade um tanto pueril de sua personagem, talvez revivendo a criança fustigada por castigos de toda ordem, os do corpo e os do espírito.
Nos anos 1930, numa efervescente Calcutá, então centro cultural da Índia, Qala luta para ser vista como uma vidushi, uma mulher que se destaca no cenário musical por seu raro talento, ao passo que homens se tornam pânditas, mestres, sem muito suor. Guptan aproveita esse gancho para elaborar com leveza o argumento da sempiterna misoginia hindu, sobretudo num tempo em que mulheres independentes eram raras — e flagrantemente desrespeitadas. Desse ponto até o desfecho, a diretora conduz “Qala” sem muitas surpresas, a não ser na cena final, destino que essa cantora das mais amargas melodias não merecia.
Filme: Qala
Direção: Anvitaa Dutt Guptan
Ano: 2022
Gênero: Drama
Nota: 8/10