Histórias de um mundo infantil e louco

Histórias de um mundo infantil e louco

— Já vou avisando que não gosto de tomar vacina — disse a menina sorridente, estancada no meio do consultório, com os bracinhos cruzados.

O médico achou a cena hilária e sorriu pela primeira vez naquela manhã. 

— Qual o seu nome, menina?

— Dorinha.

— Bom dia, Dorinha. Eu também não gosto de tomar vacina. Mas, elas são importantes pra gente crescer com saúde.

— Eu não gosto da agulha — ela disse. A garota tinha enfeites no cabelo, os olhos jaboticabados e usava um vestido branco desenhado com dezenas de joaninhas multicores.

— Nem eu. De qualquer forma, não se preocupe. Quem vai se consultar hoje é a sua mãe. Aqui na clínica não vacinamos as pessoas.

— Jura?

— Quero que Deus me deixe careca se eu estiver mentindo.

A menina levantou uma sobrancelha, achando o comentário sem sentido.

— Enquanto examino a sua mãe, você fica sentadinha aí. Não vamos demorar nem um minuto.

— Quero ir junto com vocês.

— Se levantar daí, vai apanhar — ameaçou a mãe com cara de brava.

— Isso não será necessário. Já notei que essa menina é muito educada. Ela vai se comportar direitinho, não é mesmo?

A menina fez uma careta escalafobética e não disse que sim, nem não.

— Segura o celular, filha — disse a mãe, conectando o vídeo de uma canção que ele nunca tinha escutado.

Dorinha sentiu-se conformada, empertigou-se na cadeira e começou a cantar num inglês embromado misturado com algum idioma infantil. Enquanto examinava a paciente, o médico ficou encantado com a voz doce e afinada da menina. A mulher foi se vestir e ele retornou para a antessala, dançando de forma desengonçada, boba, fazendo tremeliques só para divertir a menina.

— Ora, ora, ora… Você canta muito bem. Tão pequenininha e já sabe cantar em inglês? Que esperta você é.

— Eu canto em português também. Quer ouvir?

— É claro que eu quero ouvir.

A menina começou a cantar uma canção gospel que, obviamente, ele desconhecia.

— Qual a sua idade, boneca?

— Eu não sou boneca.

— Me desculpe. Qual a sua idade, Dorinha?

— Cinco — ela disse, espalmando uma das mãozinhas para frente. E você?

— Um tiquinho a mais: cinquenta e sete.

— Uau! Como você está velhinho…

A mãe baixou o rosto envergonhada.

— Nem tanto. Estou assim porque rodei muito em estrada de terra.

A menina não entendeu a piada e fez beicinho.

— O que aconteceu com os seus cabelos, doutor?

— Caíram.

— Por que eles caíram?

— Porque, quando eu era criança, teimava com a minha mãe e não comia verduras.

— Eu como verduras todos os dias — ela comentou, visivelmente impressionada com a informação. Minha mãe faz pra mim.

— Sua mãe sabe das coisas. Os legumes fazem muito bem para a saúde das pessoas, principalmente, das crianças. Dormir cedo, brincar com os amigos e praticar esportes também é muito bom.

A garota suspirou longamente, pensando o que perguntaria a seguir.

— Doutor, você tem filhos?

— Sim. Tenho dois filhos. São lindos como você.

— Eles são crianças também?

— Não, Dorinha. Eles já cresceram. São adultos. O rapaz tem vinte e sete; a mocinha, vinte e quatro.

— Como eles se chamam?

— Felipe e Júlia.

— Nossa! Eu tenho dois colegas na escola que se chamam Felipe e Júlia.

— É mesmo? Que bela coincidência. E eles são legais?

— A Júlia, sim. O Felipe, mais ou menos. Acho que é porque ele come pimenta.

O médico solicitava os exames e fazia as recomendações preliminares para a mulher. A menina, que tinha parado de cantar e de fazer perguntas, observava a tudo com notória curiosidade. Então, pegou o carimbo que estava sobre a mesa e carimbou o dorso da mão esquerda. A mãe ralhou impaciente com a traquinagem. O doutor pediu calma, disse para a menina não se mexer, buscou papel-toalha, embebeu com álcool e limpou a sua mão, retirando toda a tinta.

— Pronto. Ficou novinha em folha. Viu só?

— Doutor, posso falar uma coisa?

— Sim. Claro. Diga.

— Eu gostei muito de você.

O médico ficou sério de repente, como se tomasse um soco no estômago.

— Eu também gostei muito de você, Dorinha. Parabéns. Você é uma criança muito inteligente e educada.

— Fofinho.

O médico não se conteve com o adjetivo e soltou uma gargalhada que reverberou por dentro dele e pelos corredores da clínica.

— Fofinha é você, pequena. Não pare de cantar, ouviu? Você tem muito talento. Quem sabe, um dia, ainda vira uma cantora famosa.

As visitantes saíram do consultório e o experimentado doutor desabou sobre a poltrona, soturno, comovido, absolutamente encantado com o carisma da menina, contente com o encontro inusitado.

— Mais tarde, preciso escrever sobre isso — comentou consigo mesmo, ainda aturdido, enquanto juntava papéis sobre a mesa e se preparava para chamar a próxima paciente.

Sentia-se mais animado, finalmente. Aquela cena matinal, escabrosa, dos policiais cavoucando o quintal do vizinho, em busca do corpo da menina desaparecida arruinara completamente o seu dia. Isso até surgir aquela criaturinha que falava pelos cotovelos. Foi como se um raio de sol tivesse penetrado por uma pequena fissura e clareado um breu de miséria e de desencanto no qual ele se encontrava aprisionado.

Eberth Vêncio

É escritor e médico.