Potente e aterrador, novo filme da Netflix vai estraçalhar sua alma como uma bola de canhão Divulgação / Netflix

Potente e aterrador, novo filme da Netflix vai estraçalhar sua alma como uma bola de canhão

Há tantas questões tratadas no thriller psicológico indiano “Qala”, que daria conteúdo para um projeto de pesquisa. Como simplificar sem ser simplista? É difícil, mas prometo tentar abordar alguns temas dessa trama densa e complexa, do mesmo diretor de “Bulbull”, Anvita Dutt, que buscou esculpir essa obra da cinematografia indiana com tanto esmero quanto sua primeira. Neste enredo, ele rege como quem dirige uma orquestra. Aqui temos a história da maestrina Qala, uma musicista de sucesso, que alcançou sua fama a duras penas e muito esforço. Afinal, uma mulher que vence em um mundo dominado pelos homens precisa trabalhar dobrado, especialmente quando o machismo é uma das raízes mais fortes e estruturantes da cultura do país.

O machismo está infiltrado em todas as tensões dessa narrativa. A história se passa nos anos 1930 e Calcutá era um centro de efervescência artística e cultural. Nascida de pais músicos, Qala foi a sobrevivente, durante o nascimento, de um parto de gêmeos. “Se um nasce forte e saudável, ele pode absorver a nutrição destinada ao outro”, disse o médico à mãe, Urmila, que a partir de então trava uma silenciosa e torturante inquisição sobre a filha, culpada pela morte do irmão.

A mãe de Qala deseja que ela dê continuidade ao legado de seu pai na música e, para isso, treina a menina mais de oito horas por dia no sitar e no canto. Penaliza Qala trancando-a de fora de casa, na neve, quando ela comete deslizes, e constantemente lhe oferece olhares e frases de desdém, como se seus esforços fossem sempre insuficientes. O trabalho dobrado de Qala não é apenas para conseguir o sucesso na música, mas principalmente pela aprovação de Urmila, que preferia que o bebê homem tivesse sobrevivido.

E é durante uma audição de Qala, que sua mãe conhece o substituto ideal para o filho perdido. Jagan Batwal é um jovem órfão, um talento resplandecente que hipnotiza todos que o escutam cantar. Seu dom natural e divino vai abrindo seus caminhos para o mundo, enquanto Qala, que se esforça tanto, vê suas habilidades serem ofuscadas ao lado dele. Urmila parece só ter olhos e ouvidos para o novo filho, agora instalado em sua casa como o gêmeo perdido. O sonho do legado de seu marido agora está sobre os ombros do forasteiro que colonizou o mundo de Qala e parece desfrutar de todas as benesses que ela nunca pôde usufruir, como o amor e o orgulho de sua mãe.

Mas quando uma doença acomete Jagan e o faz perder a voz, o mundo de todos começa a desabar. Para ele, é como se sua identidade tivesse sido roubada. Sua energia vital, sua alegria de viver e sua alma começam a desvanecer. Junto com seu dom, morrem também as esperanças de Urmila de ter um filho bem-sucedido. Os desdobramentos levam a mãe de Qala a perder novamente o gêmeo homem. Na mentalidade adoentada e narcisista de Urmila, é como se a própria Qala tivesse novamente sugado os nutrientes do novo irmão. A mãe se fecha ainda mais para a filha, culpando-a pela destruição de Jagan e banindo-a de sua vida, mesmo que a culpa não seja realmente dela.

Quando o destino começa a se abrir para Qala a levando, finalmente, ao estrelato, há uma sensação de culpa, além de uma síndrome de impostor, que não permite com que ela desfrute do melhor momento de sua vida. Embora seja requisitada para filmes e entrevistas, sua mãe não retorna suas ligações. Qala começa a ter visões de Jagan a estrangulando e a culpando por ter roubado seus sonhos. Ela sente que não é digna de sua posição, algo bem comum entre mulheres bem-sucedidas que constantemente são colocadas à prova e são obrigadas a reafirmar seus talentos.

A medida do sucesso de Qala é também a medida de sua culpa, implantada desde a infância pela mãe, se alimentando de sua vida e crescendo dentro dela como um parasita insaciável. Em seu momento de glória, a protagonista não consegue aproveitar seu sucesso, pois se sente constantemente doente. “É como um barulho aqui e um medo aqui”, diz ao médico apontando para a cabeça e para o peito, exatamente como Jagan o fizera anos antes, quando teve seu talento apagado. Atormentada por um sentimento consumidor de insuficiência, Qala só descansa quando dá à mãe o gosto de seu próprio veneno.

Uma produção aterradora e, ao mesmo tempo, brilhante, “Qala” é um filme para fortes. É preciso ter estômago, coração firme e mente sã para que o espectador não se deixe levar pela manipulação do próprio thriller, que expõe dores e culpas que, quando engatilhadas, podem causar muitos estragos.


Filme: Qala
Direção: Anvita Dutt
Ano: 2022
Gênero: Thriller
Nota: 10/10

Fer Kalaoun

Fer Kalaoun é editora na Revista Bula e repórter especializada em jornalismo cultural, audiovisual e político desde 2014. Estudante de História no Instituto Federal de Goiás (IFG), traz uma perspectiva crítica e contextualizada aos seus textos. Já passou por grandes veículos de comunicação de Goiás, incluindo Rádio CBN, Jornal O Popular, Jornal Opção e Rádio Sagres, onde apresentou o quadro Cinemateca Sagres.