Filme com Bruce Willis, na Netflix, para desligar o cérebro, esquecer os problemas e aproveitar o passeio Divulgação / Eurovideo

Filme com Bruce Willis, na Netflix, para desligar o cérebro, esquecer os problemas e aproveitar o passeio

Quanto mais longe fica o homem do mundo, mais se aproxima de sua própria alma; seus mistérios, ainda que sempre absorventes, se tornam menos indóceis, e a vida até parece mais fácil, uma vez que põe-se mais alerta e não se flagra vítima dos delírios que ele mesmo teima em criar. Um lado ambivalente da natureza de todos nós, tão cheio de luzes e sombras, de reentrâncias e saliências, subidas e declives, mantém-se a salvo da curiosidade quase sempre destrutiva de quem nos rodeia, mas acabam se impondo circunstâncias em que o cerco se fecha a ponto de pensarmos que vivemos numa espécie de universo paralelo, um lugar mágico e maldito onde não somos mais os protagonistas da nossa própria vida, momento em que recrudesce a sensação de que algo de muito errado se anuncia, adquirindo proporções cada vez menos racionais, revestindo-se de uma aura de emoções que se sucedem, se libertam e voltam a se encastelar, processo mais e mais incontrolável, até que finalmente tudo degringola em obsessão, paranoia, frustrações, melancolia, tristeza. Numa etapa em que já não nos dominamos mais, ainda nesse movimento, nos puxa uma espiral de perigos e ameaças, em conjunturas e situações que não fazem parte do mundo físico. Tudo se assemelha mais a um sonho, ou um pesadelo, em que lembranças as mais indefinidamente tétricas fundem-se ao muito pouco que podemos equiparar à realidade, tesouro de valor ainda mais inestimável frente a aleivosias de toda sorte.

Histórias que se põem a tentar dizer como será o futuro lançam mão de uma premissa bastante elástica, que faz caber conceito os mais saborosamente desvairados. Pode-se estar à beira de um cataclismo mundial sem volta só porque determinado algoritmo de um programa qualquer encasquetou de se comportar como se fosse dono da própria vida, como se tivesse uma vida, e pior, se tornasse tão arrogante quanto a grande maioria dos seres humanos, passasse por cima das vontades alheias e decidisse quem é ou não digno de gozar de liberdades básicas como andar na rua sem ser importunado ou sair para devorar um lanche cheio de gordura poli-insaturada às três da manhã. Se o paladino do bom, do justo e do belo é um sujeito de cores avunculares, boa-praça, conhecido do público de outros carnavais, aí torna-se muito mais fácil deixar-se levar pelo enredo e aproveitar a viagem, que termina bem na hora em que tinha tudo para melhorar. Não dá para se levar “Difícil de Matar” a sério — a começar pelo título — e Matt Eskandari o sabe. Mesmo que involuntariamente, o trabalho do diretor se presta a um tributo ao gênero que consagrou Bruce Willis e uma homenagem em senso estrito ao astro, uma espécie de Oscar muito particular destinado a valentões amaciados pelo tempo.

Encarnando Donovan Chalmers, Willis tem a oportunidade de matizes ligeiramente novos em seu trabalho de intérprete, caprichando na prosódia para convencer como um bilionário meio enigmático demais preocupado com o risco de um certo segredo ir parar em mãos erradas. O roteiro de Clayton Hughes e outros três autores — dentre os quais um tal Joe Russo, homônimo do produtor dos arrasa-quarteirões da Marvel — não explica (mas nem é tão necessário assim) por que  lhe vem a cabeça o nome de Derek Miller, o ex-agente das Forças Especiais que passou a ganhar a vida como mercenário, vivido por Jesse Metcalfe; o caso é que, uma vez acionado, Miller convoca Sasha, personagem de Natalie Eva Marie; Harrison, papel de Jon Galanis; e Dash, de Swen Temmel, para dar-lhe cobertura. Os quatro se dedicam a elaborar um plano para manter proteger o que parece ser o último resquício de esperança para a manutenção da vida na Terra, até que Eva, a filha de Chalmers interpretada por Lala Kent, é sequestrada por um terrorista conhecido pelo jocoso apelido de Pardoner (“o que perdoa”, em tradução literal). A partir desse ponto, Eskandari envida todas as suas forças para fechar esse imenso arco, envolvendo, por óbvio, o elenco nessa missão quase impossível.

Recém-afastado de suas atividades profissionais devido à afasia, uma disfunção cognitiva que o impede, entre outras coisas, de memorizar falas e responder a estímulos na velocidade adequada, Willis merece todas as homenagens. Eu só acho que o ótimo (e quase esquecido) “A Gata e o Rato” (1985-1989), de Glenn Gordon Caron, cairia bem melhor, até por reciclar Cybill Shepherd, outro ícone cult, num ostracismo inexplicável. Noves foras, “Difícil de Matar” tem lá sua graça, mas as produções da franquia “Duro de Matar” têm muito mais. A vida é assim.


Filme: Difícil de Matar
Direção: Matt Eskandari
Ano: 2020
Gêneros: Ação/Comédia
Nota: 8/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.