Muito pode ter mudado no cinema — e no mundo —, mas uma constatação se impõe: filmes de suspense continuam despertando o interesse do público. Rian Johnson é mais um dos muitos diretores a reverenciar — a seu modo — a Dama do Crime. A escritora britânica Agatha Christie (1890-1976) continua a servir de base para uma infinidade de filmes de suspense. Todavia, em “Entre Facas e Segredos” (2019), Johnson perturba o seu tanto a ordem do estabelecido no gênero e transfigura a narrativa, não importando mais quem fez o quê, mas a que altura da história se vai chegar ao assassino. O morto em questão é Harlan Thrombey, célebre autor de livros de suspense — e o espectador adora esses joguinhos metalinguísticos —, degolado com crueldade aos 85 anos em sua própria mansão. Benoït Blanc, renomado detetive com direito a perfil na revista “New Yorker” e tudo, parece o único habilitado a solucionar o caso, e logo conclui que, por um motivo ou outro, todos os que conviviam com Thrombey tinham razões de sobra para matá-lo. Os pontos em comum com “Assassinato no Expresso Oriente”, publicado em 1934, são inegáveis, mas “Entre Facas e Segredos” é original ao revelar, já no segundo ato, as circunstâncias em que se deu o crime, sendo esse o anticlímax fundamental do enredo, com o adendo de que determinados personagens sabem o que houve e tentam de todas as maneiras dificultar a vida de Blanc, enquanto os demais permanecem à deriva na trama, conjecturando, como o público, de que maneira o imbróglio vai acabar.
Ao apresentar arcos dramáticos independentes entre si, mas que convergem quanto a se entender o todo, o filme ganha em substância. As condutas de todos os suspeitos, cada qual com suas peculiaridades, são escrutinadas, o que fomenta no espectador a clássica ideia de estar participando de um jogo de adivinhações, em que raramente as coisas são como se mostram e os diversos personagens têm o condão de iludir a audiência — malgrado deixem escapar propositalmente um ou outro detalhe que, em algum momento, há de contribuir para a solução do caso. Nunca prescindindo por completo dos chavões do suspense tradicional, Johnson entrega um filme tenso e divertido, dispondo dos tipos que constrói feito peças de um jogo de tabuleiro, manipulando-os mais à frente ou mais à retaguarda, nos ritmos mais diversos, no intuito de conferir à história o dinamismo que a caracteriza e a torna tão genuína.
Rian Johnson tem sido considerado, com toda a justiça, um dos diretores mais inventivos do cinema contemporâneo, a exemplo do que se depreende de seu trabalho em “Looper — Assassinos do Futuro” (2012) e “Star Wars: Episódio VIII — Os Últimos Jedi” (2017), que enfureceu os fãs mais ortodoxos da franquia justamente pela natureza ventilada do enredo, que parecia monolítico. Em “Entre Facas e Segredos”, Johnson lança mão de oito personagens para levantar suas hipóteses a respeito da morte do protagonista. Por meio do recurso do whodunnit (“quem matou”, em tradução livre), a trama se desdobra sobre a filha mais velha, que virara uma concorrente do pai e abrira sua própria editora; o filho mais novo, presidente do grupo que publicava os livros do pai; a nora, uma dondoca que posta fotos nas redes sociais e pensa que é influenciadora; o genro bajulador; o neto mais velho, almofadinha mulherengo e meio boçal; a neta, estudante viajandona; o neto mais novo, projeto de déspota com inclinações ultradireitistas; e a gentil ex-cuidadora.
Decerto, o suspense clássico, à Agatha Christie, perdeu muito de seu glamour — e até de sua razão de ser — num mundo escravizado por modismos, reducionismos e o famigerado politicamente correto, verdadeira praga que se disseminou entre todas as sociedades civilizadas do globo a partir do início dos anos 2000. Mesmo assim, Johnson aponta alternativas de modo a contornar o problema e realizar um filme tão original quanto instigante, precisamente por ser capaz de corromper o estabelecido e suscitar discussões estimuladoras, como ocorre com o personagem de Ana de Armas, a ex-cuidadora do velho Thrombey. O argumento da luta de classes, por exemplo, vem a lume de maneira completamente reciclada, adicionado a elementos que remontam à hipocrisia de aristocratas xenófobos, que alegam que a moça seria como alguém da família, mas sequer sabem de onde exatamente ela veio, sem dúvida a fim de escapar da pobreza severa e tentar fazer a América, mourejar, melhorar de vida, prosperar, quem sabe enriquecer, o que acaba se constituindo um respiro cômico dada a espantosa alienação dos grã-finos. Boa parte deles se faz de liberais, de progressistas, mas certamente nunca ouviram falar de Adam Smith (1723-1790), John Stuart Mill (1806-1873) ou John Maynard Keynes (1883-1946); os demais assumem sua visão de mundo autoritária, reacionária, fascista. Em comum, os dois grupos têm o mesmo desprezo atávico pelo outro, em especial pelo outro pobre, uma elite beócia cinicamente devota de uma filosofia de vida baseada em meritocracia, apesar de nunca ter precisado mover uma palha para desfrutar de todo o luxo que a vida pode oferecer. Ao denunciar o caráter parasítico do clã do finado escritor, Johnson abre outras frentes de proveito num filme que deveria ser mero entretenimento. E, felizmente, não é.
Malgrado preste uma merecida homenagem ao suspense de antanho, “Entre Facas e Segredos” não perde a chance de, em alguma proporção, implodi-lo e erigir no lugar algo realmente novo, politicamente engajado e, o principal, distante, bem distante do previsível e do tedioso. A história de Rian Johnson é feliz ao se provar apta a atingir os mais diferentes públicos, graças à direção cuidadosa e às atuações bem-acabadas. Uma demonstração insofismável de que homenagem não tem nada a ver com servilismo.
Filme: Entre Facas e Segredos
Direção: Rian Johnson
Ano: 2019
Gênero: Mistério/Crime
Nota: 10/ 10