Cada mulher e cada homem é um universo muito particular, centrado em normas próprias, que funcionam com algum grau de acerto — ou não se estenderiam ao longo dos anos — e ideias específicas sobre o que é o mundo, um lugar hostil mesmo que não queira, com suas tantas revoluções sempre insistindo em botar abaixo tudo o que já existe há muito, muito tempo, sem saber muito bem como substituir toda a ruína de um sistema inquestionavelmente repleto de enganos, mas louvado por saber reconhecer quem vence dos eternos perdedores. Necessidades as mais íntimas, algumas sublimadas, uma vez que não se encontra condições de serem saciadas; expectativas doidas acerca da vida para além do sonho, momento em que percebemos que nossa concepção do existir está flagrantemente divorciada da realidade; reflexões quanto à natureza infeliz do homo sapiens sapiens, sem dúvida a espécie mais desditosa da Criação, todos os assuntos que não se furtam a andar nas cabeças e nas bocas da gente humilde e dos endinheirados, dobram-se à inescapável evidência da dificuldade de se manter vivo, não sob o ponto de vista da sobrevivência, mandamento que observamos instintivamente, mas no que concerne às atitudes que tomamos (e, mais ainda, as que deixamos de tomar) a fim de legitimar esse sagrado direito.
Ken Carter é um homem singular. Apesar de bem-sucedido, Carter nunca digeriu a ideia de ter de topar com a miséria onde quer que fosse, ainda injustificável e abjeta por saber que poderia ser debelada com o instrumento mais simples e mais poderoso que já criaram para tanto: a educação. Seus conhecimentos a respeito de basquete, uma paixão nacional nos Estados Unidos, foi o trampolim de que saltou rumo à mudança de vida de um grupo de estudantes do ensino médio, atletas em potencial, mas atrevidos, indisciplinados, sem noção alguma de como converter essa rebeldia em qualquer coisa que os ajudasse a vencer as incontáveis pedras pelo caminho. Thomas Carter talvez tenha visto no sobrenome em comum, que não denota parentesco, a iluminação que faltava-lhe para seu próximo filme. Com “Coach Carter” o diretor destrincha um enredo pleno de excelentes possibilidades fílmicas, com que narra a vida extraordinária de seu protagonista, muito superior à da pedestre humanidade em geral.
Este é um filme que depende sobremaneira da performance de seu elenco, e Samuel L. Jackson entende o recado perfeitamente. À época metido em polêmicas desnecessárias sobre um filme que contaria a vida do rapper 50 Cent, Jackson supera o disse-me-disse do melhor jeito: com trabalho duro, sem medida, num visível esmero em cada uma das muitas sequências em que sua figura aristocrática se faz presente, quase 100% do produto final. Na pele do personagem-título, o ator, um dos mais engajados de Hollywood — e sem nenhum prejuízo da sensibilidade artística —, vai dando pistas do que pretende com sua versão de Carter, um sujeito que lembra um tio meio rígido demais, mas sem dúvida todo amor e cioso da sorte (e, principalmente, da desdita, sempre à espreita) de seus protegidos, estudantes de um colégio no perigoso subúrbio de Richmond, no oeste da Califórnia. Naquele distante 1999, o personagem de Jackson resolve se dividir entre a loja de artigos esportivos e o time de basquete formado por alunos do primeiro ao terceiro anos, desde que — e isso consta do contrato que assina, do qual seus comandados também partilham — a média da equipe nunca seja inferior a 5,75, o que nem parece tão difícil assim. O problema é que esses garotos, vindos todos, cada qual a seu modo, de lares desestruturados e realidades nada cômodas, tem um vasto histórico de péssimo rendimento escolar, sem mencionar, por óbvio, a inclinação para a prática de atos infracionais de boa parte deles.
Thomas Carter desenvolve esse argumento com habilidade, nunca permitindo que um fatídico tom moralista emerja e conspurque a força da trama, um drama da vida real com um raro final feliz. Pena que essas histórias quase nunca acontecem no Brasil.
Filme: Coach Carter
Direção: Thomas Carter
Ano: 2005
Gêneros: Drama/Esporte/Biografia
Nota: 8/10