Desde o primeiríssimo instante em que se sente fazendo parte do mundo, percebe-se um ser dotado de alguma razão e cheio de questões fundamentais que só ele mesmo é capaz de equacionar, o homem se dá conta de que viver não é nada fácil e que a luta pela sobrevivência força-nos a incorporar uma postura agressiva diante dos outros, quiçá até violenta, o que fazemos muitas vezes de bom grado e sem qualquer sinal de esforço, já que essa é a nossa verdadeira natureza. O lado predador de cada um vive à sorrelfa, arreganhando os dentes, mostrando as garras e ansiando por uma oportunidade de dar o bote, desconsiderando princípios, normas, códigos de conduta e farejando caminhos para burlar a própria lei. O vilão que criamos para justificar nossa indignidade vem à luz com espantosa fluidez, e o personagem se assenhora de tudo quanto houver de ainda são, afinando-se a nossos propósitos mais substanciais. O espírito, sempre falto daquela nesga de lucidez que aparta o bem do mal e a vida da morte, cheio de seus tantos melindres, presta-se ao cargo de algoz com certa frequência, e tanto mais queremos dominá-lo, mais ele se nos mostra selvagem, cobra que agasalhamos em nosso seio, nos enfeitiça e nos rasga a carne, inoculando o veneno que nos há de destruir.
Da mesma forma que a vida prepara suas armadilhas e impõe seus caprichos, também subverte seus próprios planos, fazendo com que pessoas de histórias e destinos aparentemente semelhantes se cruzem, com tamanha naturalidade que poder-se-ia dizer que tinham um encontro marcado. São esses mistérios que fazem da ideia de se estar no mundo uma experiência incomparável, como se, da noite para o dia, tudo estivesse para ser mudado, fosse completamente razoável que bandidos se transformassem em mocinhos, verdadeiros mártires do homem e suas causas mais nobres e passassem a combater os malfeitores que não tivessem a alma tocada por um desejo qualquer de mudança. A força do enredo de “O Chacal” (1997) é lembrada por Michael Caton-Jones quase um quarto de século depois do clássico “O Dia do Chacal” (1973), dirigido por Fred Zinnemann (1907-1997), ajustando-se um ou outro detalhe segundo a conveniência da hora. Ainda que as duas produções tenham suas diferenças — pontuais, mas contundentes — Caton-Jones consegue reviver a mágica do original numa trama em que há espaço para que dois personagens fortes se destaquem igualmente. Ou quase.
Bruce Willis, o Chacal do título, é um matador de aluguel cheio de idiossincrasias, para ser elegante. Contratado pela bagatela de setenta milhões de dólares (americanos, como ele faz questão de frisar) por um chefão da máfia russa para dar cabo do diretor do FBI que comandou a operação em que seu irmão foi executado, o antagonista-protagonista resolve que inscrever-se numa corrida de veleiros de Chicago a Mackinaw, no Michigan, a fim de atravessar a fronteira com o Canadá e se lançar no mundo atrás do figurão, é a melhor alternativa para executar sua tarefa no tempo mais curto possível. Se ele sequer intuíra que o serviço secreto dos Estados Unidos, claro, estaria na sua cola ou julga-se muito expedito ou imaginou que aqueles senhores sisudos, de ternos pretos e rosto escanhoado, não ficariam com a pulga atrás da orelha ao observar os eventos que se sucedem desde que voltara à ativa.
Caton-Jones parece muito à vontade ao brincar com esses tantos absurdos, propositais, até que se cansa e chama Richard Gere para a brincadeira. Declan Mulqueen, um ex-terrorista do IRA, o Exército Republicano Irlandês — que topava chacinar mulheres e crianças, desde que sem artefatos explosivos —, é o único em quem Preston, o número 2 do FBI vivido pelo saudoso boa-praça Sidney Poitier (1927-2022) confia, ainda que ele não seja capaz de mensurar até onde pode ir o súbito bom-mocismo de Mulqueen.
De potoca em potoca, “O Chacal” vai se revelando um filme saboroso, até nas cenas eminentemente tensas, como as do desfecho, em que uma primeira-dama muito parecida com a mulher do então presidente Bill Clinton (1993-2001), Hillary Rodham Clinton, discursa para uma plateia de milhares de espectadores num evento de filantropia. Uma mistura muito pouco equilibrada, até desastrada mesmo, de realidade e ficção, humor e violência. Mas quem não gosta?
Filme: O Chacal
Direção: Michael Caton-Jones
Ano: 1997
Gêneros: Thriller/Ação
Nota: 8/10