Há um pequeno diamante para o cérebro e para os sentidos circulando em livrarias: “Cartas Inéditas de Graciliano Ramos a Seus Tradutores Argentinos Benjamín de Garay e Raúl Navarro” (Edufba, 162 páginas), de Pedro Moacir Maia (1929-2008).
Além das cartas, há ensaios (de excelente qualidade) de Pedro Moacir Maia, professor da Universidade Federal da Bahia, e textos de Alberto da Costa e Silva, Carlos Drummond de Andrade, José Mindlin, Márcio Moreira Alves, Salvador Monteiro, Urania Maria Tourinho Peres, Waldir Freiras Oliveira sobre o organizador da coletânea. O aparato crítico é valioso, mas não será comentado neste texto, exceto en passant.
O livro contém 18 cartas de Graciliano Ramos (1892-1953 — viveu apenas 60 anos) para Benjamín de Garay e três cartas para Raúl Navarro (1899-1959). E há três cartas de Heloísa Ramos para o primeiro tradutor. Vinte e quatro cartas, portanto. Os dois argentinos traduziram várias obras de escritores e intelectuais brasileiros para o espanhol — entre eles Euclides da Cunha, Graciliano Ramos, Jorge Amado, José Lins do Rego, Erico Verissimo, Marques Rebelo, Monteiro Lobato e Rachel de Queiroz. O argentino Bernardo Kordon também traduziu obras de autores patropis. “O Velho Graça — Uma Biografia de Graciliano Ramos” (Boitempo, 359 páginas), de Dênis de Moraes, cita Benjamín de Garay em oito páginas, menciona Raúl Navarro (por sinal, seu nome não aparece no índice de nomes), mas não há nenhuma referência a Bernardo Kordon (tradutor de “Vidas Secas”).
Quando Pedro Moacir Maia — um dos discípulos baianos do filósofo e escritor português Agostinho da Silva (parceiro de Darcy Ribeiro na formatação da UnB) — era diretor do Centro de Estudos Brasileiros da Embaixada do Brasil em Buenos Aires, nos anos 1970, Gloria Garay de Guevara informou que estava disposta a vender cerca de duzentas cartas de escritores brasileiros para seu pai às instituições culturais do país. Por causa da burocracia, a venda não foi efetivada. Então, sabiamente, o mestre baiano decidiu comprá-las.
No livro, o leitor pode conferir os originais, escritos a mão ou datilografados, e a transcrição literal das cartas. As cartas foram enviadas para os dois argentinos entre 1935 e 1947.
Em 1935, Graciliano Ramos havia publicado dois romances — “Caetés” e “São Bernardo” (ou “S. Bernardo”). Com sua prosa concisa, única — o paralelo possível não é com outro prosador, e sim com o poeta João Cabral de Melo Neto —, era respeitado pelos companheiros de jornada e pelos críticos
Prisão do “comunista” que ainda não era comunista
Sem nenhuma acusação formal — nem processo havia —, Graciliano Ramos foi preso no dia 3 de março de 1936 pela polícia do governo do presidente Getúlio Vargas. Note-se que o país ainda não estava sob o tacão do Estado Novo (1937-1945). Havia uma ditadura sem o nome de ditadura. O escritor era, digamos, um intelectual de esquerda, mas ainda não era filiado ao Partido Comunista, o que só fez em agosto de 1945. Ele só foi liberado da cadeia em 1937, no dia 13 de janeiro, quase um ano depois. Na apresentação, Fernando da Rocha Peres ressalva que, apesar de ter se tornado comunista, o escritor “não se submete aos ditames partidários, principalmente os que diziam respeito a uma censura ideológica a sua obra literária”. O realismo do autor de “Vidas Secas”, sua obra-prima, nada tem a ver com o realismo socialista. Se vivesse na União Soviética, sob Stálin, teria sido preso, possivelmente, porque era, à sua maneira, um rebelde, tanto como homem quanto como escritor. A correspondência com os tradutores argentinos começou um pouco antes da prisão.
Na introdução, Pedro Moacir Maia assinala que as cartas para Benjamín de Garay e Raúl Navarro, “os primeiros tradutores e críticos estrangeiros” de Graciliano Ramos, são importantes, “notadamente, por surpreendermos nelas a gênese, ou, pelo menos, as origens de ‘Memórias do Cárcere’ e de ‘Vidas Secas’. Esperemos que um dia sejam encontradas as cartas dos dois argentinos para o nosso escritor. Algumas — poucas, raras, que achei de Garay — estavam com Clara Ramos, autora de dois livros sobre o pai, a qual me ofereceu o original de uma e fotocópia de outra”.
Cartas de Graciliano Ramos para Benjamín de Garay
1
Na primeira carta, de 17 de agosto de 1935, enviada de Maceió, Graciliano Ramos conta que está escrevendo “Angústia”, que apresenta como “um romance encrencado”. “Tenho uma vida embrulhadíssima e não me é possível dedicar atenção continuada a este gênero de ocupação.”
Graciliano Ramos era pobre e, para sobreviver, tinha de escrever crônicas e contos para os jornais.
Na carta, o escritor assinala que “Caetés”, o primeiro romance, “é todo escrito em português. ‘S. Bernardo’ tem centenas de locuções regionais, coisas do Nordeste que não figuram na língua dos livros. Caso o senhor ache necessário, pode mandar-me uma lista de palavras e frases desconhecidas, que eu lhe enviarei as formas correspondentes neste horrível português que infelizmente ainda usamos”.
A tradução proposta por Benjamín de Garay enche Graciliano Ramos “de vaidade”. Porém, o mais importante é que o colocará “em contato com os escritores do resto da América do Sul, que desgraçadamente sempre têm estado longe de nós. É uma vergonha. Conhecemos a França, a Inglaterra, a Alemanha, a Rússia e até Portugal, mas ignoramos a América, apesar de falarmos quase a mesma língua”.
2
Na carta de 30 de setembro de 1935, enviada de Maceió, acusa o recebimento de “um volume de contos de Monteiro Lobato” publicado na Argentina, com tradução de Benjamín de Garay. “Que extraordinário trabalho você está realizando aí!” (com exclamação de tudo, e o escritor abjurava textos com exclamações).
Generoso, Graciliano Ramos esforça-se para que Benjamín de Garay traduza outros escritores brasileiros. Ele diz para o tradutor que José Lins do Rego enviará “Banguê”; Rachel de Queiroz, “O Quinze” ou “João Miguel”; e Jorge Amado, “Suor”. “São dois dos melhores romancistas da nova geração; você não perderá em conhecê-los. A literatura do Nordeste está se afastando muito da do resto do país. É conveniente que você faça relação entre Lins do Rego, Jorge Amado e Rachel, três romancistas interessantes, muito inteligentes.” Note o leitor que a carta é de 1935.
3
Na carta de 13 de dezembro de 1935, remetida de Maceió, volta a falar de Jorge Amado, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz. Benjamín de Garay parece ter perguntado sobre Humberto de Campos e José Américo. Sobre o primeiro nada comenta. Sobre o autor de “A Bagaceira”, diz: “Este é ministro, senador, o diabo, e eu não me entendo com gente assim”. Adiante, na mesma carta, acrescenta: “A literatura do ex-ministro José Américo não me agrada. Mas os livros novos do Zé Lins e do Jorge são bons. Você leu ‘Jubiabá’? Gostei. Tem páginas ótimas. Tanto nesse ‘Jubiabá’ como no ‘Moleque Ricardo’, do Lins, os pretos estão muito bem arranjados”.
Benjamín de Garay sugere a publicação de contos de Graciliano Ramos numa revista que circula com 300 mil exemplares. “Mas é o diabo, seu Garay. Eu nunca escrevi contos, e nem sei se me seria possível, enchendo-me de boa vontade, arranjar uma história decente. Não lhe serviria um capítulo de um romance? Estou agarrado com unhas e dentes ao meu ‘Angústia’. (…) Se você achasse conveniente, eu escolheria um capítulo para ‘El Hogar’”. E admite aceitar o pedido: “Vou ver se consigo fabricar o conto e morder os cem mil réis que a revista oferece”.
4
Na carta de 26 de fevereiro de 1937, enviada do Rio de Janeiro, Graciliano Ramos, que havia sido libertado da prisão, conta a Benjamín de Garay: “Conheci uns tipos curiosos, umas figuras admiráveis para romance. Preciso arrumar isso no papel antes que as recordações esfriem”. O material foi utilizado, anos mais tarde, em 1953, no livro autobiográfico “Memórias do Cárcere”.
Provando que era objetivo, Graciliano Ramos diz: “Vamos agora a negócios. Como vai o meu ‘S. Bernardo’, que se transformou em ‘Feudo Bárbaro’?” O romance começou a ser traduzido por Raúl Navarro, mas houve um problema com a editora e o livro não foi publicado.
Graciliano Ramos alerta o tradutor: “Tenho coisa melhor, o livro que saiu em agosto”. Mas avisa sobre os erros, resultantes de algum empastelamento: “A composição é medonha, cheia de erros e pastéis, porque não pude vigiar a publicação” (estava preso). Cabotino (e verdadeiro) diz que a obra é “notável”. Trata-se do romance “Angústia”.
Precisando ganhar dinheiro, pois estava pelas tabelas, depois da prisão, escreve: “Posso mandar-lhe uns troços para revistas daí, os contos a que você se referiu (…) e que até agora não fabriquei”. Graciliano Ramos pede um pouco mais de dinheiro pela colaboração: “Você não me conseguiria mais de 25 pesos por conto? Julgo que lhe arranjarei uns dois ou três por mês”. E frisa que, “por enquanto, necessito escrever para jornais”.
Benjamín de Garay, com o incentivo dos pesos argentinos, é, de alguma maneira, “responsável” não pelo romancista, mas pelo contista Graciliano Ramos.
5
Na missiva de 22 de abril de 1937, enviada do Rio, Graciliano Ramos reclama das dificuldades financeiras: “… ando aperreado, chateado, indignado com a obrigação de pagar casa, comida, bonde, roupa, café. (…) Você não acha que é safadeza sustentar um cidadão durante um ano e de repente mandá-lo embora, desempregá-lo sem motivo?”
Na verdade, Graciliano Ramos está dizendo duas coisas. Primeiro, a vida estava difícil. Segundo, que o governo prende o cidadão, no caso o escritor, e depois solta. Ocorre que, depois de quase um ano preso, a pessoa não sabe o que fazer da vida para sobreviver. Ele sabia escrever, daí a retomada da correspondência com Benjamín de Garay.
“Agora preciso dar dinheiro à mulher da pensão e aumentar os lucros da Light. Para isso tenho de explorar alguém ou qualquer coisa e ser explorado pelo dono do jornal e pelo editor”, sublinha o escritor.
Depois, Graciliano Ramos “ataca”: “‘La Prensa’ quererá publicar isso, Garay? Não é precisamente o que você pediu, coisa regional e pitoresca: é delírio, complicação interior. As violências agradáveis a ‘El Hogar’ e ‘Mundo Argentino’ são difíceis, não consigo fazê-las. Desgraçadamente não sei matar ninguém direito, mesmo no papel, e isto é uma vergonha para um sujeito mais ou menos perigoso”.
O que o autor de “Vidas Secas” está dizendo é que não sabia banalizar a literatura, escrevendo coisas fáceis — para ele, difíceis —, só para ganhar uns trocados. Porém, realista, manda um conto: “Vai o delírio, Garay. Se você quiser traduzi-lo e metê-lo num jornal que tenha dinheiro, ficar-lhe-ei muito obrigado. (…) Não vi a tradução que você fez do meu conto ‘Dois dedos’, nem sei em que revista saiu”.
Provando, mais uma vez, sua generosidade, Graciliano Ramos elogia Rachel de Queiroz para Benjamín de Garay: “Essa adorável criatura tem um romance novo, ‘Caminho de Pedras’. Leu? Transmiti ao Jorge Amado o seu pedido sobre ‘O País do Carnaval’.”
6
Numa carta curta, Graciliano Ramos anuncia a Benjamín de Garay que havia mandado um conto e avisa que está remetendo “outra história, um negócio de bicho, de alma de bicho. Será que bicho tem alma? Deve ter qualquer coisa parecida com isso, qualquer coisa que dê para a gente receber um cheque. Tenha a bondade de examinar essa questão psicológica e financeira, meu caro Garay. Veja se a alma da minha cachorra vale alguns pesos aí numa redação ou em sociedade protetora de animais”.
A carta, de 11 de maio de 1937, é importante, porque Graciliano Ramos anuncia, de modo indireto, que começara a escrever “Vidas Secas” (segundo um crítico, trata-se de um “romance desmontável”). Pois o “conto”, “Baleia”, é um dos capítulos do romance. É quase uma história autônoma. Baleia, a cachorra, é uma espécie de Argus que acompanha seu Ulisses, Fabiano, na sua peregrinação… em busca de um “lugar”, quiçá inexistente, na sociedade em que vive, à margem.
7
Na carta de 12 de maio de 1937, Graciliano Ramos relata que recebeu duas traduções de Benjamín de Garay: um artigo de Monteiro Lobato e “Judas”, de Euclides da Cunha — “que li e admirei”.
O escritor diz que está enviando “Angústia” para Benjamín de Garay e José Santos Góllan. “Aviso-o de que há na história pastéis em demasia: como eu estava pra lá das grades e não pude fazer revisão, estragaram-me o livro.”
Graciliano Ramos informa que vai cobrar de Rachel de Queiroz o envio de “Caminho das Pedras”. E pergunta: “Já viu ‘Pureza’, de José Lins?” Ele estava sempre promovendo os amigos.
8
Na carta de 13 de maio, volta a falar da tradução de “Judas”, de Euclides da Cunha. Frisa que a tradução é “admirável”. “Não sou devoto de Euclides da Cunha; o verbalismo dele às vezes me arrepia, mas isto não é razão para que eu deixe de admirar essa bela tradução que você me remeteu.”
Num artigo, Monteiro Lobato faz referência, de acordo com Graciliano Ramos, “à indiferença e à estupidez do público”. “Isso nos surpreende, Garay, pois literatura é coisa pouco ou mais menos inútil. Não pensamos assim, mas devemos estar em erro: a sua editora arrasta-se com dificuldade, a Academia trata da ortografia, os escritores brasileiros morrem de fome ou são funcionários. O próprio Lobato ocupa-se com petróleo. E faz bem.”
Fica-se sabendo que a tradução de “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, está encalhada. “Os argentinos não lerão a história de Canudos, mas ficarão sabendo que Deus, a pátria e a família existem no Brasil”, ironiza Graciliano Ramos.
O escritor comunica que enviou um exemplar de “Angústia” (“esse desgraçado livro saiu cheio de pastéis”) e “Pureza”, de José Lins do Rego. “Angústia”, segundo seu autor, “é coisa menos ruim que ‘S. Bernardo’.”
Graciliano Ramos avisa que enviou um conto para “El Hogar” ou “Mundo Argentino”. Trata-se de “uma história de cachorro”. “Seria magnífico se você pudesse meter isso em ‘La Prensa’, mas provavelmente esses senhores não gostam de bichos. A minha cachorra é um animal ordinário e cheio de peladuras”. Trata-se de “Baleia”, mas ainda não de “Vidas Secas”.
Benjamín de Garay pede a Graciliano Ramos que explique a feitura do conto “O Relógio do Hospital”. “Talvez não me seja possível dizer como essa coisa foi feita.” Depois de uma cirurgia, o escritor diz que teve delírios e que os aproveitou em “Angústia” e alguns contos. “Os contos valem pouco, mas o fim do romance parece que não está completamente mau.”
No trecho final, anuncia-se a gênese de “Memórias do Cárcere”: “Tenho a ideia de fazer uns livros a respeito da prisão. (…) Tenho um bom assunto, uns tipos curiosos, e acho-me na obrigação de aproveitar o material que o governo [de Getúlio Vargas] me ofereceu”.
9
Na carta de 1º de julho de 1937, Graciliano Ramos finalmente nomeia o conto que enviou para Benjamín de Garay: “Como vai a minha ‘Baleia’? Trabalho numa série de contos regionais; quero ver se consigo fazer psicologia de bichos: cachorros, matutos. Se minha ‘Baleia’ for bem recebida aí, mandar-lhe-ei umas histórias semelhantes. (…) Podemos publicá-las em espanhol; primeiro em jornal, depois em livro. Antes disso vamos ver como tratam a cachorra doente.”
Graciliano Ramos pergunta a respeito do conto “O Relógio do Hospital”. “Envio-lhe ‘Um Pobre Diabo’. Seria bom que você metesse tudo isso num jornal que pagasse direito”. E volta a falar nos “pastéis” (erros tipográficos) de “Angústia”: “Provavelmente você vai encontrar dificuldades na tradução. Há também as expressões nordestinas de ‘S. Bernardo’, que aqui no Sul ninguém entende.”
10
Na carta de 8 de novembro de 1937, o escritor menciona “aborrecimentos, inquietações, uma vida encrencadíssima, o diabo”. Avisa Benjamín de Garay que recebeu um cheque de “La Prensa” e a tradução de “O Relógio do Hospital”. “Coisas que me chegaram quando eu mais precisava delas. Ótimo o seu trabalho, até senti inveja. Com roupa argentina, bem cortada e bem cosida, espichada numa página de jornal estrangeiro e importante, vi-me diferente de mim mesmo, não me reconheci. Você é um bicho, Garay”.
Graciliano Ramos elogiou a tradução, notou sua fluência e correção na língua de chegada. Mas observou que, a rigor, a história não era mais só dele, era também do tradutor, o que é natural. Mesmo que seja “discreto”, o tradutor é uma espécie de sub-autor.
“La Prensa” pagou 70 pesos pelo conto. “Achei razoável o pagamento. (…) Se me fosse possível meter de quando em quando uma colaboração em ‘La Prensa’, eu teria dupla vantagem: exploraria o seu país e veria talvez os meus produtos valorizados na imprensa brasileira. Realmente as revistas de Buenos Aires pagam tão mal como as daqui, mas um jornal grande e rico tira a gente de sérias dificuldades.”
Graciliano Ramos desconfia que o tradutor não gostou do conto “Baleia”. “É pena, pois não tenho nada melhor que essa cachorra”. Mas acrescenta que está espichando a história: “Quer ver os parentes dela?”
Continua a promover José Lins do Rego: “É um sujeito ótimo”. E pergunta sobre “São Bernardo” (ou “Feudo Bárbaro”, título que o escritor aceitou, a contragosto, parece). Ele assinala que há “tradutores que supõem que jaca é arbusto”.
11
Na carta de 18 de novembro de 1937, Graciliano Ramos diz que aceitou a sugestão de Benjamín de Garay para escrever histórias regionais. Porém, o autor de “Vidas Secas” não era um escritor qualquer, e sim um criador refinado: “Fiz isto [escreveu contos regionais], mas afastei-me da literatura que nos apresenta, sem nenhuma vergonha, matutos inverossímeis. Os nosso matutos nunca foram observados convenientemente. Os que aparecem em romances pensam como a gente da cidade e falam difícil, apenas deformando as palavras, suprimindo os ss, os ll e os rr finais. Com esse recurso infantil, certos escritores brasileiros se julgam sagazes” (não há a menor dúvida de que Guimarães Rosa seguiu o sendeiro do autor de “Vidas Secas”).
Graciliano Ramos acrescenta: “Os tipos que lhe mando são verdadeiros. Procurei vê-los por dentro e evitei os diálogos tolos e fáceis, que dão engulhos. Os meus matutos são calados e pensam pouco. Mas sempre devem ter algum pensamento, e é isto que interessa. Não gastei com eles as metáforas ruins que o Nordeste infelizmente produz com abundância”. A volta ao homem simples — a sua linguagem “curta” ou “miúda” — não é para repetir a literatura nordestina, e sim para reinventá-la (algo próximo ao que William Faulkner fez com a literatura do Sul dos Estados Unidos; e lá, como no Brasil, imperou e impera a maldição da escravidão — um dos maiores horrores da história). O que ele fez na prosa, João Cabral Melo Neto fez na poesia — os dois criaram, por assim dizer, uma nova épica para o Nordeste: mais precisa e enxuta e sem melodrama e choradeira. De alguma maneira, Graciliano Ramos é o João Cabral da prosa e João Cabral é o Graciliano Ramos da poesia.
12
Na carta de 8 de dezembro de 1937, Graciliano Ramos informa que ele e Benjamín de Garay estão com problemas de visão. “Os olhos bons sempre vão para os indivíduos que não se servem deles.”
O escritor assinala que não pôde arranjar um exemplar de “Casa Grande & Senzala” para o tradutor. Porque a edição havia esgotado. E, respondendo a uma consulta de Benjamín de Garay, diz que não sabia o que era “urucungo” (leia o esclarecimento adiante).
“Baleia” não agradou ao tradutor, de acordo com Graciliano Ramos. “Apresento-lhe agora o meu ‘Fabiano’. (…) ‘Um pobre diabo’ saiu realmente bem medíocre, mas ‘Baleia’ é uma cachorra direita. Vamos ver se, em companhia da família sertaneja, esse infeliz animal lhe causa melhor impressão. O meu plano foi este, meu caro Garay: fiz uma série de contos com os mesmos personagens. Nada de originalidade, questão de pecúnia, somente: os contos poderão ser publicados em jornal, o que não aconteceria se eu lhe enviasse capítulos de romance. Cada história começa e acaba, naturalmente, sem prejuízo para o leitor, mas todos juntos formam um romance, que não edito agora porque o público tem coisas muito sérias em que pensar e não perde tempo com literatura.”
O professor da USP Ivan Marques explica bem a “montagem” de “Vidas Secas” a partir de vários “contos” — na verdade, eram mesmo capítulos de um romance (a explicação de Graciliano Ramos acima é pertinente: era mais fácil vender “contos” do que “capítulos” de um romance em andamento) — no livro “Para Amar Graciliano — Como Descobrir e Apreciar os Aspectos Mais Inovadores de Sua Obra” (Faro Editorial, 171 páginas). Na página 62, o autor cita Rubem Braga: “A intenção era mesmo escrever um romance, ‘mas a conta da pensão não podia esperar um romance’, por isso ele foi vendido à prestação e ‘cada capítulo ficou sendo conto’” (o texto entre aspinhas é do cronista).
“Quase tão pobre como o Fabiano, o autor fez assim uma nova técnica de romance no Brasil. O romance desmontável”, escreveu Rubem Braga.
O crítico Luís Bueno, citado por Ivan Marques, acrescenta: “‘Vidas Secas’ é um romance cuidadosamente montado, a partir de peças fabricadas com perfeição”.
13
Na carta de 13 de dezembro de 1937, Graciliano Ramos informa que enviou “Fabiano” — “personagem notável da história que você está recebendo aos pedaços”.
O autor de “Vidas Secas” aproveita para discutir como a literatura do Nordeste é vista no país, participando do debate, criticamente: “Ultimamente uns cidadãos têm aqui sustentado que a literatura do Nordeste é coisa mesquinha, interessante apenas para gente miúda que planta cana e algodão. Os indivíduos que se dedicam à nobre cultura do café só se poderão contentar com romances grandes, que serão escritos em S. Paulo, com certeza. As regionalices do Nordeste não valem nada. É o que dizem”. É um recado direto aos modernistas paulistas, como Mário de Andrade e Oswald de Andrade.
O escritor volta a “Vidas Secas, que ainda não se chamava “Vidas Secas” (por sinal, o primeiro título era horrível: “O Mundo Coberto de Penas”): “O meu bárbaro pensamento é este: um homem, uma mulher, dois meninos e um cachorro, dentro de uma cozinha, podem representar muito bem a humanidade. E ficarei nisto, enquanto não me provarem que os arranha-céus têm alma”. Ou seja, mais uma estocada nos modernistas de São Paulo.
Insistindo com um de seus grandes personagens, Graciliano Ramos pede a Benjamín de Garay: “Receba com paciência o meu pobre ‘Fabiano’”.
14
Na carta de março de 1938, Graciliano Ramos informa a Benjamín de Garay: “Urucungo não é instrumento de percussão: é um troço congo-angolês, também chamado berimbau de barriga. (…) É composto de uma cabaça e de um arco, com uma corda”. Quem o ajudou a esclarecer a questão foi Arthur Ramos.
O nome de Raúl Navarro é ventilado pelo escritor. O argentino, a pedido de Benjamín de Garay, planeja traduzir “S. Bernardo”.
Graciliano Ramos comemora: “Este mês terei um livro novo, ‘Vidas Secas’, de que você já conhece alguns personagens: Fabiano, dois meninos e a cachorra Baleia”.
15
Na carta de 16 de maio de 1938, Graciliano Ramos diz a Benjamín de Garay: “A literatura brasileira, coitada, anda bem magra, muito por baixo: há nela uns pobres famintos e uns sujeitos ricos, que felizmente não escrevem. Todos juntos valem pouco. Em horas de patriotismo e entusiasmo falamos alto e enchemo-nos de fumaça, naturalmente. (…) É possível que desta medonha trapalhada se salve meia dúzia de páginas. (…) Por enquanto colocamos nas vitrines das livrarias pequenos romances vagabundos que os amigos elogiam e os inimigos não atacam porque isto contribuiria para a divulgação deles”.
O escritor fala da editora Claridad: “É uma companhia rica, não é isso? Você fará para ela traduções a cento e cinquenta pesos e eu lhe cederei o meu trabalho mediante uma gorjeta que o patrão aí determinará”.
Graciliano Ramos ressalva: “Para lhe ser franco, estimado Garay, direi que isso não me convém. Enquanto o negócio era com você, tudo estava certo. Nunca lhe perguntei quanto a sua editora me pagaria, e quando chegou o contrato, assinei-o sem discutir, porque a transação era feita entre sujeitos mais ou menos arrasados. Mas de repente apareceram os Srs. Fulano & Cia., que não conheço, e me largaram um osso de duzentos pesos. Diante dessa proposta, entendi-me com Jorge Amado. (…) Jorge Amado me declara que recebeu da Claridad quinhentos pesos por uma edição de ‘Mar Morto’. (…) Penso que o homem de Claridad me quis intrujar. É verdade que a minha situação econômica não é das melhores. Realmente não tenho prosperado, e essa modesta pecúnia me serviria bastante. (…) Ora, eu não fiz negócio de nenhuma espécie com a Claridad. Já que a sua editora naufragou, é razoável que se desfaça a transação que havíamos entabulado. Se esses cavalheiros andassem direito estaria tudo muito bem; mas logo no começo me querem embrulhar — e é natural que eu grite. Faça-me você o obséquio de explicar aos homens de Claridad que não aceito essa história não”.
16
Na carta seguinte, de 27 de maio de 1938, Graciliano Ramos contemporiza: “Os duzentos pesos são uma ninharia, mas já que você diz que o editor não pinga mais, dê um jeito para que esse judeu me arranje logo um cheque”. O livro é “São Bernardo”.
A encrenca entre Graciliano Ramos e a Claridad acabou paralisando a tradução de Raúl Navarro.
Na missiva, Graciliano Ramos conta que enviará um exemplar de “Vidas Secas” para Benjamín de Garay. O escritor comenta que Di Vruno planeja traduzir “Angústia” para o espanhol.
Ao se despedir do tradutor, Graciliano Ramos faz uma cobrança: “Veja se me manda com brevidade os cobres do senador, indispensáveis”.
17
Na carta de 4 de julho de 1938, Graciliano Ramos agradece a Benjamín de Garay por ter enviado a “ótima edição dos ‘Sertões’ em espanhol”.
O escritor conta ao tradutor: “Acabo de receber uma proposta da Sociedade Amigos dos Livros Americanos, com sede em Buenos Aires. Proposta muito razoável: a edição de dez mil exemplares de um livro meu, duzentos dólares de direitos autorais e mais vinte centavos (moeda argentina) por exemplar vendido. (…) Ofereceram-me duzentos dólares, e por aí vê o meu amigo que não posso trocá-los pelos duzentos pesos de Claridad, muito remotos. Tudo isso é duvidoso, mas, incerteza por incerteza, prefiro uma incerteza em dólares”.
A crise levou Raúl Navarro a não terminar a tradução de “São Bernardo” (traduziu cerca de 50 páginas). Há, no livro de Pedro Moacir Maia, três cartas de Graciliano Ramos para o tradutor.
Há um aspecto interessante a respeito das cartas: além do intercâmbio cultural em si, registram a literatura como negócio entre a Argentina e o Brasil. E um “negócio” relativamente forte, com traduções de vários autores, ainda que o faturamento financeiro não fosse alto. Há também o fato de que publicações da Argentina, jornais e revistas, compravam contos de autores brasileiros.
Recolhi trechos das cartas (deixei de lado uma de Graciliano Ramos, todas de Heloísa Ramos e as três do escritor para Raúl Navarro), mas vale a pena lê-las devagar e integralmente e os comentários de alta qualidade de Pedro Moacir Maia.
Pedro Moacir Maia aproxima “Memórias do Cárcere” do livro de Camilo Castelo Branco (1825-1890), publicado com o mesmo título, e relata que Heloísa Ramos deu a ideia para Graciliano Ramos escrever “Vidas Secas”. Ele chegou a sugerir que ela escrevesse um livro, mas depois pediu suas notas e escreveu “contos” e, depois, o romance. Uma mulher, portanto, é responsável direta por um dos três melhores romances brasileiros (os outros dois são: “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e “Grande Sertão: Veredas”).
O livro pode ser adquirido na editora da Universidade Federal da Bahia.
Graciliano disse que Camus escrevia mal e mutilou “A Peste”
Graciliano Ramos era exigente a respeito da tradução de seus livros, chegando a propor ajuda aos tradutores argentinos Benjamín de Garay e Raúl Navarro. Seus romances e contos era revisadíssimos e ele sempre tinha um cuidado especial com a ortografia. Estava sempre lamentando os erros das editoras e gráficas — apontando “erros tipográficos” calamitosos.
Porém, quando se metia a traduzir a obra alheia, era menos “cuidadoso”. Em 1950, traduziu “A Peste”, do franco-argelino Albert Camus, Nobel de Literatura de 1957, e praticamente se tornou coautor do romance.
Em “O Velho Graça — Uma Biografia de Graciliano Ramos” (Boitempo Editorial, 359páginas), Dênis de Moraes relata: “Não fosse por necessidade financeira, teria recusado o serviço, pois achava que Camus escrevia mal. Tanto que fez uma tradução livre, quase reescrevendo o romance, assinando-a apenas com as iniciais GR”.
Em 1979, Cláudio Veiga, professor de língua e literatura francesa da Universidade Federal da Bahia, avaliou, assinala Dênis de Moraes, “que o texto original de Camus ‘ficou mais magro’ — foram suprimidos termos acessórios ou essenciais, e alterada sistematicamente a estrutura das frases”.
“Por essa violência contra o texto original, a tradução de Graciliano Ramos deixa a desejar. Tem-se a impressão de que o tradutor manipula o romance de Camus como se fosse um rascunho pessoal, o texto primitivo de um de seus romances. Parece aplicar em ‘A Peste’ o tratamento severo que, segundo ‘Memórias do Cárcere’, deveria ter imposto a um de seus livros — cortar-lhe a terça parte. Não chega a cortar a terça parte de ‘A Peste’, mas, sem exagero, não há uma página sequer do romance em que não tenha havido supressão ou condensação”, afirma Cláudio Veiga.
De acordo com Dênis de Moraes, Graciliano Ramos parecia apreciar “endireitar” a prosa daqueles que traduzia, quiçá para torná-los seus, digamos, “discípulos”. “Já ao traduzir ‘Memórias de um Negro’, em 1940, dizimara dois capítulos de Booker Washington e eliminara, sem piedade, períodos inteiros. E ainda vangloriava-se da façanha: ‘O homem vinha direito, umas observações ótimas, de repente se estrepava todo. A todo instante, repetia ideias, usava palavras desnecessárias, fazia círculos de peru. Cortei uma infinidade de asneiras, e ainda ficaram muitas. Negro burro’”, anota Dênis de Moraes. Sabe-se que Graciliano Ramos não era racista, mas sua fala é de uma grosseria inominável.
Tradutor de Joyce dialoga com Mário de Andrade
O argentino Salas Subirat é o primeiro tradutor de “Ulysses”, de James Joyce, para o espanhol. Não era expert e muitos intelectuais e escritores, como Jorge Luis Borges, torceram o nariz para suas “diabruras” linguísticas.
Salas Subirat era um homem comum (vendedor de seguros), como Leopoldo Bloom, o protagonista, depois da linguagem, do romance. Sua história está contada no livro “Salas Subitart — El Traductor del Ulises” (Sudamericana, 398 páginas), de Lucas Petersen.
Mário de Andrade, autor de “Pauliceia Desvariada” e “Macunaína”, leu a obra do escritor portenho, escreveu a respeito e os dois trocaram cartas. O prosador e poeta brasileiro é citado em 12 páginas do livro. O intercâmbio cultural entre o Brasil e a Argentina merece registros mais detidos.