Dotadas de uma natureza muito particular, famílias lançam mão de expedientes os mais diversos, quiçá desvairados, a fim de manter a coesão do grupo, composto, naturalmente, por pessoas que têm seus próprios gostos, manias, traumas, paranoias. Esse crescendo de emoções que extrapolam sem cerimônia todos os círculos da razão e não se furtam a apoderar-se do presente com vistas a projetar-se para além do futuro, nunca se manifesta sem boa medida de delírio, sintoma de uma degenerescência irrefreável e sem cura, que tende a se alastrar até que não haja mais nenhuma margem para regresso. O que acontece no seio de uma família tem o condão de transformar aquelas vidas, para o bem ou para o mal, e nesse segundo caso, as consequências nunca se restringem ao momento: criam raízes por debaixo do visível, braços venenosos que tornam infértil qualquer terreno até que não reste um palmo de chão livre do vício e da hipocrisia, clamando pela aurora do sol da verdade, inarredável e translúcida.
O tempo se constitui um remédio e um perigo para as chagas abertas das relações humanas, sempre à espera de um alívio que nem sempre chega. Por óbvio, é a maneira como encaminhamos nossas questões mais profundas que determina os possíveis futuros passos na direção da felicidade, esse destino tão ansiado e tão contrafeito por negligências de toda ordem. Acontecimentos que se passam há anos, em outras vidas, com pessoas que já não somos mais, ressurgem com força redobrada, intempestivamente, sempre que uma qualquer vulnerabilidade nos assola, devassando-nos o espírito, ainda mais alquebrado que o corpo; precisamente nessas horas é que temos de tirar ânimo de um lugar que nunca havíamos acessado antes para, talvez, virar a página e dar uma chance à vida — o que nem sempre ocorre. “O Paciente Perdido” quase nunca é o que parece, até que a história interrompe a deriva de que se vale por muito tempo e assume uma configuração mais enxuta, mais objetiva, em que predominam boas cenas de um fino suspense. O francês Christophe Charrier exerce um domínio nada estrito sobre seu filme, como se deixasse a trama falar por si só.
Adaptado da graphic novel homônima de Timothé Le Boucher e roteirizado por Charrier e Elodie Namer, “O Paciente Perdido” começa num tom surpreendentemente solar, tanto que, se comparada ao restante do enredo, essa cena parece completamente descabida, como se quisesse contar uma história diferente. Entretanto, o diretor logo trata de contextualizá-la, inserindo-a num todo a princípio bastante confuso, que por seu turno passa a fazer sentido após breves explicações iniciais, que se desdobram num arco mais profundo e seco, em que emergem os personagens centrais. O assassinato que se presta a mote do longa só depois é mostrado sob a forma de uma perversa carnificina, de que são vítimas o pai, vivido por Stéphane Rideau, a mãe, interpretada por Audrey Dana, e o personagem de Matthieu Lucci, apresentado como primo, mas nesse ponto esconde-se outro dos segredos muito bem guardados da narrativa. Paulatinamente, Charrier vai encaminhando a audiência para o lugar onde ela sente-se, afinal, à vontade para apreciar a história do ponto de vista onde ela se desvela melhor, faltando ainda umas tantas pontas a amarrar.
O trunfo no modo como o filme é levado é delimitar muito bem os dois ambientes psicológicos em que os fatos mais importantes se dão, que, por acaso, correspondem, a cenários muito distintos. Thomas, o protagonista de Txomin Vergez, está quase sempre no hospital, convalescendo de uma amnésia e do trauma de que sua família não escapara e participando das sessões compulsórias de terapia ministradas pela psicoterapeuta interpretada por Clotilde Hesme. Na outra ponta, Charrier faz despontar Laura, da ótima Rebecca Williams, a melhor composição do enredo, capaz de justificar os crimes assombrosamente macabros que dizimaram os pais e o suposto primo de Thomas.
Mistura de um pouco de Agatha Christie e muito de Poe, “O Paciente Perdido” tem seus próprios méritos. Ainda que o próprio Charrier os ignore ao optar por enquadramentos abertos demais.
Filme: O Paciente Perdido
Direção: Christophe Charrier
Ano: 2022
Gêneros: Drama/Mistério/Suspense
Nota: 8/10