Em “Fedro”, no capítulo intitulado “A invenção da escrita”, o filósofo grego Platão assevera que o inventor de tal arte de escrever, o deus Thoth, ao ser indagado pelo governante Tamuz, afirmara que o seu feito literário tornaria os súditos egípcios mais sábios… Inspirado nos ensinamentos platônicos, neste artigo abordar-se-á o processo de deformação da identidade de indivíduos em processo de mutilação intelectual, deflagrado por intermédio da disseminação de uma indústria da ignorância instaurada pelo poder público e privado. Nos primórdios da colonização desta Terra de Santa Cruz; e, enfim, Brasil, em razão de um cobiçado pau de tinta, os membros da Companhia de Jesus se aperceberam de que o aprisionamento do imaginário dos silvícolas ameríndios, adeptos do consumo de cauim, poligâmicos e antropófagos, houvera de ser a metodologia mais eficaz se almejassem resultados práticos de catequização de cunho evangélico e civilizatório. Destarte, o desígnio de aliciamento propositado pelos padres jesuítas se pautava pela obediência às prédicas e parábolas bíblicas, adaptadas ao convívio de ordem social, a partir dos púlpitos em sermões e das encenações teatrais, representadas no altar-mor e/ou pátios da ermida. Neste contexto, o público espectador, composto por íncolas, negros, cristãos-novos, cabos-verdes, caribocas, sararás, degredados e toda sorte de forasteiros que se habilitavam por ‘fazer a América’, era capturado por meio do cristianismo vigente, de modo a servir de rebanho escravizado pelo viés do imaginário, o que, a princípio, dispensaria o castigo físico da via-crúcis, deflagrado pela corrente de ferro, vergalho, pelourinho, cadafalso e calabouço.
Deste modo, para expansão dos predomínios político-religiosos, o catequizador-mor de nomeada Manoel da Nóbrega encomendou peças teatrais ao subordinado hábil e talentoso, escriba andarilho que, doravante, se canonizaria São Anchieta, o Apóstolo do Brasil. De pronto e imediato, habilidosamente, o então jesuíta José de Anchieta se debruçou por sobre episódios extraídos das Escrituras Sagradas e da oralidade baseada em narrativas lendárias de origem autóctone, a fim de que se inaugurasse a dramaturgia brasílica de cunho pedagógico e moralizante. Cabe acrescentar que os intentos cênicos da Companhia de Jesus culminavam na aniquilação dos costumes e tradições das ‘bárbaras criaturas sem alma e evangelho’, mui bem descritas pela epístola inaugural, subscrita por Pero Vaz de Caminha, escrivão oficial da frota de Pedro Álvares Cabral; e, posteriormente, endereçada aos auspícios d’El-Rey de Portugal e Algarves, d. Manuel I, o Venturoso. Conforme supracitado no parágrafo introdutório, o escopo evangelizador jesuítico predizia que as missas-espetáculos coibissem o execrável ritual antropófago, decantado por Hans Staden, Montaigne e Jean de Léry, ao mesmo tempo em que se apregoava que as interpretações teatrais amainassem a poligamia, congênita e atávica, denunciada por Fernão Cardim e Gândavo. Os registros pertencentes ao período da literatura Informativa também atentavam para o exagerado consumo d’um tal licor de milho, batizado como cauim, que se fabricava por intermédio da saliva das virginais selvagens, habitantes deste Éden Brasilis ou Paraíso Terreal, consoante pe. Rocha Pita. Não obstante, de fato, objetivava-se que os autos anchietanos incutissem no inconsciente coletivo a figura de um Deus benévolo e vingativo, sobretudo com aqueles súditos que não assimilassem as doutrinas, preceitos e dogmas da Madre Igreja Católica e Apostólica Romana.
Aculturados pela arte de Gil Vicente e Lope de Vega e pelos sermões do pe. Antônio Vieira, haja vista a necessidade de absolvição do espírito dos incréus desprovidos de amém e oração, decerto os fiéis recém-catequizados se adequariam aos padrões de cordialidade, imprescindíveis ao processo colonizatório imposto pela Coroa lusíada. Em patamar histórico, é sabido que, ao aportar dos navios negreiros d’Áfricas, as prerrogativas refratárias à exploração da mão de obra dos aborígines dos trópicos se multiplicaram, de tal modo que relegaram a plateia de outrora ao papel de coadjuvante. De outra feita, os cultores de batina e crucifixo responsáveis pela construção da consciência colonial prosseguiram dedicando-se à formação dos portugueses do Brasil, até a fatídica expulsão orquestrada pelo indômito d. Sebastião (José de Carvalho e Melo), o Marquês de Pombal. Neste sentido, no período de doutrinação dos povos originários e/ou forçosamente imigrados, os sacerdotes educadores se utilizaram dos métodos de inserção de uma aprendizagem, que se catalogava pelo temor ao Deus soberano, como chave de ingresso no Reino Sagrado dos Céus. Como ilustração, numa de suas peças teatrais, o estrategista José de Anchieta batizou Lúcifer, com a mesma identificação nominal do líder da tribo inimiga, como se ambos fossem homônimos por natureza. Por este artifício, constata-se que a moldura da formação da identidade pátria, forjada através de práticas de cooptação, desaguará na dita contemporaneidade, quando nos deparamos com a mutilação do raciocínio crítico e da aptidão de questionamento de uma parcela da população, hoje, em sua maioria miscigenada, por intermédio do binômio: Religiosidade / Aculturação.
Por este raciocínio, poder-se-ia preconizar que, muito provavelmente, de nada adiantaria se rebelar contra um notório sistema de amputação de ideias encarceradas pela eficiência da opressão desde o Brasil-Colônia, de vez que ainda é preciso dizer que, na contemporaneidade, se adicionam eficazes castrações intelectuais, provindas de exímios mecanismos de escravização para além dos autos civilizatórios de Anchieta? Em verdade, a partir da segunda metade do século 20, o Estado se utilizou de idêntica metodologia para sequestrar a inteligência questionadora da nação, pelo hábil e competente método incutido por múltiplos aprisionamentos de ordem cerebral, porquanto a técnica maquiavélica dos inescrupulosos Calígulas dos trópicos se alicerçara na mesma degradação instaurada através de políticas de desestabilização do mais valioso patrimônio humano: o discernimento intelectual. Não obstante, de minha trincheira lírica, reivindico o livre-arbítrio do pensamento crítico aos mandatários deste país tropical abençoado por Deus que, no discurso político exaltam a necessidade de investimentos sociais: educação, saúde, saneamento básico etc., mas que, na prática hipócrita e corrupta, ignoram, tacitamente, a necessidade de reestruturação do processo de formação cultural pátrio. Isto ocorre porque num Brasil potencialmente analfabeto, conforme o dissera Antônio Houaiss, ex-ministro da Cultura, em hipótese alguma se presencia intento de restauração do patrimônio humano, tão distante da realidade da República idealizada por Platão.
Todavia, peço que não conformemo-nos com as mordaças disfarçadas pelo sistema de preces e ideologias dos lobos em pele de cordeiro, ideólogos da identidade pátria destruída e mutilada, que há de nos remeter ao caboclo Jeca Tatu, filósofo da Lei do Menor Esforço, que, de cócoras, quando incitado a se expressar, não possui recursos intelectuais para ultrapassar a frase-refrão limítrofe, de modo a demarcá-lo, não como um ser pensante potencializado pelo exercício de sua condição humana, mas como um parasita daquele Vale do Paraíba retratado por Monteiro Lobato: “— Não vê que…”.