A partir da publicação da obra seiscentista “O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha”, de Miguel de Cervantes, a tradição ocidental diagnosticou que, quem estivesse apto a consumir narrativas de ficção, encontrar-se-ia na iminência de se tornar um sério candidato aos surtos patológicos de insanidade (ou alienação). Em consequência deste equivocado laudo anti-leitura, de forma rudimentar e retrógrada, a Literatura passou a ser uma espécie de inimiga pública número 1 da lucidez da humanidade. No clássico espanhol, ao contrário, o hábito de ler jamais poderia ser considerado como elemento causador de demência mental, a não ser na consciente proposição estética concebida por Cervantes, com o intuito de desestabilizar os percursos literários, que norteavam a prosa de ficção produzida no período trovadoresco-medieval da Idade das Trevas. Leia-se: novelas de cavalaria, que o Cavaleiro da Triste Figura devora “de sol a sol”; e, a partir daí, imagina-se um herói andante à procura de aventura, como a que se dá no confronto com os moinhos de vento, por exemplo.
Entretanto, inimaginavelmente, o ato de ler fora atirado a um patamar de enfermidade clínica e contagiosa, contra a inteligência prática do indivíduo, desde a estúrdia experiência ficcional do cinquentenário fidalgo de La Mancha, que, a princípio, justifica e faz com que se compreenda a mensagem refratária ao exercício de unir as letras; quer em pergaminhos arabescos; quer em livros, jornais e revistas impressos ou eletrônicos. Por conseguinte, insurge-se entre nós o autêntico anti-Quixote –– objetivo e ignorante!… Dito isto, observa-se que a incauta coletividade desautoriza a importância da Leitura na formação da consciência humana, ao passo que, de outra feita, cabe a indagação referente ao fato de que como uma iletrada nação, que declara ojeriza e desprezo ao Ato de Leitura, pode ainda pleitear o título de País do Futuro, forjado, a duras penas, pela retórica da nacionalidade.
No bojo desta reflexão, quiçá, coubesse outro questionamento de ordem intelectual: Será que se acaso se proclamasse do Oiapoque a Garanhuns que a Terra Prometida do Carnaval se tornará um leitor voraz, nós suplantaríamos a incômoda constatação, que deságua na frase-sentença sobre o cidadão brasileiro, que, de um modo geral, não está habituado a ler e escrever, não só por falta de incentivos educacionais, como também por desinteresse que o condiciona a uma deplorável condição arcaica, sem discernimento, ilustração e sabedoria? O mais grave é que a ínfima parcela da sociedade brasileira, com um grau aceitável de consciência crítica, presencia atônita a uma tácita e implacável censura à Leitura, porque à imensa camada social composta por uma pirâmide de não ledores muito interessa que seja negado o real acesso ao livro de ficção.
Como se a Literatura prejudicasse as retinas tão fatigadas de uma sociedade tão bem retratada no “Ensaio Sobre a Cegueira”, de José Saramago; ou “No País das Últimas Coisas”, de Paul Auster, obras distópicas que chamam atenção sobre a fragilidade da condição humana, à beira de um precipício abissal e impalpável, obstruído pela indústria da imbecilização, patrocinada pelos veículos de comunicação. Neste contexto, tornar-se-á mister divulgar, sobretudo ao não-leitor, que a Literatura vem a se pautar pela propagação da identidade pátria, por intermédio da abordagem dos elementos históricos ou dos aspectos contemporâneos da sociedade, sob o pano de fundo da ficção, que desencobre a estupidez atávica de parte da população brasileira, de modo a abrolhar a luz do discernimento historiográfico, geográfico, filosófico e/ou psicológico, em chão fértil do pensamento crítico.
Destarte, por que não se repensar o conceito de inserção dos registros literários no âmago do inconsciente coletivo deste Terrae Brasilis, a fim de que se disponha a capturar, mal parafraseando o prólogo do mestre espanhol, este “desocupado” não-leitor, para inseri-lo, responsavelmente, no lúdico e consciencioso cenário social das Letras de ficção, de sorte que se erradicasse a epidemia de insensibilidade, que assola a nação literária de Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade e Guimarães Rosa — a Síndrome de Dom Quixote?