Um dos filmes mais esperados e adoráveis de 2022 chegou à Netflix e você ainda não assistiu Divulgação / Netflix

Um dos filmes mais esperados e adoráveis de 2022 chegou à Netflix e você ainda não assistiu

Desde que abre os olhos para o mundo, o homem busca desesperadamente por alguma beleza capaz de justificar o grande sofrimento que é a vida, o que não é exatamente difícil. Há beleza em muito mais do que pode supor nossa vã filosofia, e, evidentemente, em campos que se estendem para muito além da nossa míope visão. Sábia, magnânima, a vida é capaz de transformar em beleza muito do que entendemos como revestido de uma outra natureza qualquer, lugares, pessoas, ideias, sentimentos, vontades. O que imaginamos ser imutavelmente nosso, por direito e por conquista, as tantas expectativas acerca do futuro, os feitos todos que o porvir nos reserva — até aqueles que sabemos que nunca vamos chegar a tirar do delirante plano das míseras conjecturas —, a gravidade de tudo quanto toca o que não se permite revelar: o mais que alimentamos expectativas, mesmo as que soam bestamente avizinhadas do palpável, mais distantes ficamos do indócil princípio do existir, em que só vale o que se calca no real. Entretanto, nada somos se privados do gosto do devaneio, precisamente o que nos confere algum relevo sobre todas as demais criaturas a povoar a Terra.

A fantasia é uma necessidade. Ninguém suporta atravessar a vida sem seus quinze minutos de loucura, sob pena de sucumbir ao primeiro baque — e hão de ser vários ao longo do caminho, por mais curto que ele se apresente. Todos temos o direito de erigir nossos castelos de areia, cometer um ou outro desatino, perder-nos num escuro oceano de pensamentos que arrebentam contra o porto seguro da razão, aguentando o peso de cada escolha feita ou preterida, naturalmente. A vida é um ambiente tão propício a alienações de toda sorte que, feliz ou infeliz, o homem sempre encontra uma maneira de justificar suas escapadelas da realidade, seja para amenizar a carga de seus maus tempos ou para, desejoso de novas experiências, atirar-se à empreitada de refazer seu caminho de um jeito mais harmonioso. Muito do que o homem sonha se comunica diretamente com suas reminiscências mais íntimas e, estas, por evidente, apontam para aqueles que partilharam conosco algum trecho da estrada, até o destino resolver que era hora de dar o jogo por findo e embaralhar novamente as cartas. Francis Lawrence tem se notabilizado por manter acesa em seu público a chama da urgência de conhecer o outro lado do espelho. Depois de uma bem-sucedida incursão pelo reino do fantástico nas produções da franquia “Jogos Vorazes”, Lawrence segue explorando esse filão, dando chance a abordagens mais suaves. “Terra dos Sonhos” (2022) tem o condão de provocar impacto semelhante ao das histórias sobre um mundo que se esfacela, mas aqui o diretor quer mesmo é uma trégua, levando a narrativa para outro polo.

“Terra dos Sonhos” emula a força de “Alice no País das Maravilhas” (1865), concentrando-se, como fez Lewis Carroll (1832-1898), numa heroína que amadurece à força. Nemo — que, claro, é uma homenagem dos roteiristas David Guion e Michael Handelman ao Júlio Verne (1828-1905) de “Vinte Mil Léguas Submarinas” (1870), ou ao peixinho que protagoniza a animação de Andrew Stanton — vive com o pai, Peter, de Kyle Chandler, no penedo que abriga o farol que serve também de casa aos dois. Não demora e, como era de se esperar, a garota é forçada a, tal como Alice, lidar com o infortúnio de onde Lawrence dá a partida para uma trama tão acelerada quanto poética, predicados que se ligam a atuação de Jason Momoa em grande medida. Flip, o anti-herói da história, é quem conduz a personagem central, vivida por Marlow Barkley, até Slumberland, a terra dos sonhos do título, onde a menina pode ter a chance de esquecer por instantes a convivência morna com o tio, o ricaço Phillip, papel de Chris O’Dowd, e relembrar a vida simples, mas cheia de afeto com o pai. O diretor trabalha esse argumento de modo irrepreensível, dando ao público a noção exata da instabilidade emocional de Nemo, cercada de adultos pouco confiáveis. Numa das últimas cenas, vitaminada graças à computação gráfica, o mistério quase ululante por trás da figura de Flip se desvela, e o filme ganha, afinal, sua dimensão de crônica, atual e precisa, acerca das imperfeições dos relacionamentos humanos, mesmo entre pessoas que se amam verdadeiramente, e não só em sonho.


Filme: Terra dos Sonhos
Direção: Francis Lawrence
Ano: 2022
Gêneros: Fantasia/Aventura
Nota: 9/10