Sobressair-se em meio aos simples mortais, descobrir-se superior que a maioria das pessoas comuns que enchem o mundo, achar o elemento mágico que permite que nos elevemos do rés do banal, do ordinário, da condição humana mesma e nos revistamos de uma aura mística qualquer, não propriamente transcendental, mas vigorosa o bastante para nos fazer passar de vis pecadores para um híbrido de santo, feiticeiro e mártir poderia ser a solução de muitos de nossos problemas, não fosse a evidente constatação que aponta que tal façanha logo haveria de provocar uma cornucópia de fenômenos muito menos esotéricos que indecorosos, que por seu turno não demorariam a desencapar um fio bem fornido de tensões de toda ordem, questionamentos filosóficos, elucubrações que respeitam direta e indiretamente à sociologia, o interesse súbito e nada cândido de velhas raposas políticas e, claro, o assanho de falsos profetas, excitados por um malcontido desejo quanto a também conseguir sua parte de glória e poder às custas da perpetração de um obscurantismo criminoso e do triunfo sobre a razão e as liberdades individuais de muita gente.
Religião e fé são variações de um mesmo tema, que alcança ainda o misticismo e, refinando-se um pouco mais a perspectiva, as relações entre Deus e o homem. Se a natureza divina se faz presente em rigorosamente todos os seres, animados ou inanimados, racionais ou não, como pensou Spinoza, o Criador seria também capaz de apresentar-se sob uma forma curiosamente ambígua, juntando num único ser a constituição sem falhas que o difere de qualquer outra entidade e a matéria, perecível e dúbia, que conhecemos tão bem. O chileno Sebastián Lelio tem tarimba em descrever situações nos mais matizados graus de incômodo. Em “O Milagre” (2022), Lelio resolve encampar novos e indigestos pontos de vista, desta feita voltadas a uma das controvérsias mais frutíferas da civilização. O diretor mira Deus e que maneira certos homens O veem, explicitando a confusão deliberada em torno da necessidade de se guardar a fé e de se estar sempre atento aos propósitos nada ingênuos que visam a manter aceso o interesse nas coisas do Altíssimo.
“O Milagre” é a convincente história de uma farsa. Com o filme, baseado no romance homônimo de Emma Donoghue publicado em 2016, Lelio — celebrizado por “Uma Mulher Fantástica” (2017), Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2018 — pretende atingir o coração do espectador no que ele pode ter de mais genuíno e, a um só tempo, de mais frágil: a crença de que a vida humana deve ser permeada pelo componente metafísico da religião e da espiritualidade, nessa ordem. Para tanto, junto com Alice Birch e Donoghue, filma um texto ágil, em que os 110 minutos de projeção transcorrem como num piscar de olhos, numa fluidez que causa espécie. Desempenhos como o de Florence Pugh são sempre um bônus em histórias já essencialmente cativantes, ou por tocarem superfícies muito delicadas do público ou devido ao encanto persuasório que essas tramas apresentam para aqueles que, à primeira vista, não se identificam em nada com o que se vai assistir. Sua Lib Wright, uma enfermeira inglesa deslocada para a Irlanda em 1862 a fim de cumprir uma perturbadora missão, deixa-nos cicatrizes quase tão profundas quanto às daquele cenário, palco de miséria e fome desde há, pelo menos, duas décadas. Lelio trabalha a inclusão de Anna O’Donnell, a personagem de Kíla Lord Cassidy, de modo a legitimar o sacrifício de Lib em meter-se numa nova vida tão transtornada por um ideal, ainda que regiamente paga. À medida que as duas se aproximam, claro, tudo o que parecia etéreo torna-se palpável, enfim. Como se queria demonstrar desde o princípio.
Filme: O Milagre
Direção: Sebastián Lelio
Ano: 2022
Gêneros: Thriller/Mistério/Drama
Nota: 8/10