História encantadora na Netflix talvez não mude a sua vida, mas certamente fará você ganhar o dia

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Viver não é fácil e a luta pela sobrevivência impele-nos a assumir uma postura mais agressiva diante dos outros, personagem logo incorporado a nossa natureza e que se afina a nossos propósitos mais substanciais, quais sejam, vencer as diversas adversidades que se agigantam nos cenários extremos em que a vida, cheia de seus tantos melindres, nos lança com alguma frequência e de que quase sempre nos desvencilhamos, não sem umas tantas cicatrizes. Esses sobressaltos fazem parte da condição mesma de se estar no mundo e todos nós temos nossas guerras a combater; muito mais nociva que a ideia de uma vida sem más surpresas é a ideia de supor que podemos dar cabo de todas as nossas angústias sozinhos, mesmo quando não podemos contar com o socorro de ninguém. A vida sempre se encarrega de apresentar a pessoa certa, no lugar adequado e no instante preciso, obedecendo a seu próprio ritmo, natural e orgânico, de punir, mas também de engendrar seus mecanismos de perdão e novas tentativas de dar novo fôlego ao que parecia acabado.

As tantas misérias humanas vêm embaladas por sonhos, sonhos de todos os gêneros em “Up Among the Stars” (2018), elogio à loucura de uma vida fraturada tentando se reconectar com o mundo real. Em seu segundo filme, o ator e diretor espanhol Zoe Berriatúa encampa com fervor essa ideia em seu filme, tão curto quanto intenso, fazendo uso de dois personagens que se destacam cada qual no momento exato, sem que essa parceria saia prejudicada. Pelo contrário; logo que a história começa a despontar, um e outro roubam a cena em lances mágicos, muitas vezes perto do genial, em que Berriatúa faz questão de sublinhar o fantástico em seu roteiro, sem abrir mão do argumento o mais afinado possível com a realidade, o que faz desta uma trama nada óbvia. A maneira como o diretor-roteirista escolhe retratar o sofrimento de seus personagens centrais, transformando sua dor num outro sentimento, não exatamente alegria, claro, mas uma emoção híbrida, algo como uma doçura meio acre a perpassar a jornada da dupla, e, por conseguinte, o filme como um todo, faz toda a diferença no que toca às percepções do espectador. “Up Among the Stars” acaba sendo uma grande brincadeira, em que Berriatúa, seu público e os outros dois elementos na tela partilham impressões sobre dores universais e muito particulares, sentidas por qualquer um que se recuse a passar por cima do que lhe sopra a alma.

Víctor é um homem à cata dos fragmentos que um dia compuseram a figura altiva que já fora. O personagem de Luis Callejo é um ex-cineasta devastado pela perda da mulher em circunstâncias trágicas e, ao que tudo indica misteriosas — uma das raras falhas do enredo é insistir em deixar para que o espectador decida qual pode ter sido o destino de Ángela, de Macarena Gómez, surgindo literalmente como um fantasma em trechos cruciais da história —, cujo único consolo está na relação que estabelece com o filho, Ingmar, do talentosíssimo Jorge Andreu, assim chamado, naturalmente, em homenagem a um dos mestres do cinema. Bergman vem à tona em “Up Among the Stars”, a propósito, nas incontáveis referências estéticas e retóricas empregadas por Berriatúa, que faz da metalinguagem um jogo cheio de detalhes que teriam o condão de explicar a melancolia insuperável de Víctor, como, numa sequência já próxima do desfecho prematuro, o tipo encarnado por Callejo menciona robôs como adversários do homem num mundo já confuso e injusto demais, alusão quase explícita a “Metropolis” (1927), de Fritz Lang (1890-1976). Por seu turno, as cenas em que esse artista do impossível e do absurdo se perde nos contos repletos de suas idiossincrasias que repassa a Bergman lembram muito o Tim Burton de “Peixe Grande e suas Histórias Maravilhosas” (2003), mas tudo de modo inegavelmente original.


Filme: Up Among the Stars
Direção: Zoe Berriatúa
Ano: 2018
Gêneros: Drama/Comédia
Nota: 8/10