Os sonhos são as únicas coisas capazes de tornar a vida mais suportável e menos infame. Que grande revolução haveria de se dar nos povos do mundo inteiro se cada um tivesse sonhos grandiosos o bastante para serem perseguidos sem folga, até que, por fim, saíssem do baço plano das ideias e passassem à vida como ela é, o que, evidentemente, só seria possível se fôssemos todos dignos desses sonhos. Quase sempre é necessário que larguemos tudo, abandonemos a vida que levávamos, sintamo-nos livres para rever determinados pontos de nossa trajetória para que consigamos acessar os meandros mais obscuros de nosso espírito, tudo isso para que nos aflore a sensibilidade, passagem mística e sanguínea entre nossa pobre carne e a transcendência, onde se revelam todos os segredos. Com mais tato para o que não se permite ver nos regalasse a vida, mais nossos desejos, os possíveis e, em especial, os aparentemente impossíveis, se nos manifestaria, como se o planeta fosse a mera extensão de nossos quintais e pudéssemos ser vistos como os legítimos donos de tudo quanto quiséssemos conquistar, território mágico e sem limite de onde seguiríamos rumo à Eternidade.
Uma garota romântica, daquele romantismo imanente a tudo, deixa a música e o calor de Berkeley para se enfiar num conjugado, morando de favor com uma amiga, mas ainda assim feliz por estar em Nova York, a cidade que jamais dorme, a terra das oportunidades, dos sonhos que, mais cedo ou mais tarde, se realizam para aqueles que não se intimidam pelo cansaço, pulam da cama antes do primeiro raio de sol, e peregrinam de porta em porta, dobrando a espinha e desarmando espíritos. Sendo bastante sintético, essa é a história de Joanna Smith Rakoff, uma aspirante à escritora que tenta manter o nariz acima da linha da água na selva do mercado literário americano — depois de, com algum sacrifício, conseguir furar a bolha de egos túrgidos das personagens megalômanas que atravessam seu caminho. O canadense Philippe Falardeau não tenta reinventar a roda, mas ainda assim (ou por isso mesmo) compõe um relato delicado e franco dos golpes de sorte e desventura de Rakoff em “My Salinger Year” (2020), onde aproveita para tecer comentários sutis, mas mordazes, acerca do maravilhosamente ruinoso jeito americano de viver.
No fim da década de 1990, Rakoff, que era então só Joanna, havia terminado há pouco um mestrado em literatura, e tinha de trabalhar para continuar em Nova York e manter acesa a chama da mudança. Falardeau frisa no roteiro que sua protagonista tem talento para vir a ser uma artista de renome, mas que submete a um emprego meramente burocrático, até braçal, pela necessidade dos trezentos dólares ao cabo da semana, mas igualmente por gozar dos privilégios de que o enredo se demora após um breve introito sobre como a mocinha se defende em questões um pouco menos etéreas, a exemplo de alimentação e moradia. Não poderia haver atriz mais adequada para o papel que Margaret Qualley. As composições de Qualley para essas jovens meio perdidas, que precisam contar apenas com seu aguçado instinto de sobrevivência, têm sido um bálsamo em meio à onipresença de mulheres fatais — no cinema e na vida —, como se verifica em joias raras do audiovisual deste século, caso da série “Maid” (2021), idealizada por Molly Smith Metzler, e do merecidamente aclamado “Era Uma Vez… em Hollywood” (2019), de, claro, Quentin Tarantino. E “My Salinger Year” segue a regra: a Joanna de Qualley é um tipo das melhores cepas que filmes endeusados pela indústria cultural, cult ou malditos produzem de quando em quando. O desempenho de sua intérprete vai muito mais longe do que gostariam certos realizadores, compreensivelmente preocupados em não subir demais o sarrafo.
Eu, particularmente, julgo muito mais pertinente o título traduzido — um acerto talvez involuntário, mas acerto mesmo assim — que a menção a Jerome David Salinger (1919-2010), o maior cliente da agência que emprega Joanna, também conhecido por sua misantropia, pela surdez que o leva a chamá-la de Suzanna em passagens de humor entre infantil e saboroso, e, ah!, por ter escrito “O Apanhador no Campo de Centeio” (1951), sua obra máxima. Duas reviravoltas, a primeira na travessia do primeiro para o segundo ato, esta protagonizada por uma Sigourney Weaver sempre endiabrada, que volta como Margaret para infernizar a vida de uma subalterna — como fazia com Melanie Griffith em “Uma Secretária de Futuro” (1988), do grande Mike Nichols (1931-2014) —, e a segunda, que define a força de Joanna e a própria razão de ser do filme, valem os 101 minutos de projeção. Além das aparições esporádicas de Douglas Booth, irreconhecível depois de encarnar o músico Nikki Sixx em “The Dirt — Confissões do Mötley Crüe” (2019), dirigido por Jeff Tremaine.
Filme: My Salinger Year
Direção: Philippe Falardeau
Ano: 2020
Gêneros: Drama/Comédia
Nota: 8/10