Novos microcontos do WhatsApp

Novos microcontos do WhatsApp

As já célebres oficinas de escrita criativa da União Brasileira de Escritores Seção Goiás, que contou com a participação de alguns dos maiores autores brasileiros, gerou um grupo de WhatsApp que se transformou em um verdadeiro fórum de debate cultural, onde há irrestrita liberdade de expressão. Há participantes do mundo todo: Argentina, Arábia Saudita, Portugal, Canadá e outros. Já houve de tudo neste grupo: polêmicas, brigas, surras intelectuais homéricas, reconhecimento de derrotas, críticas sinceras e até amizades que se formaram. A Revista Bula, percebendo o nível dos debates travados no grupo decidiu fazer um convite que também era um desafio. Promoveu uma seleção de microcontos produzidos por seus participantes. Os vinte melhores seriam publicados. Foram mais de 400 propostas. Diante da quantidade e da qualidade dos textos, a Revista Bula teve que dobrar a meta. O editor Carlos Willian Leite, juntamente comigo e o escritor Solemar Oliveira selecionaram quarenta microcontos, publicados em duas coletâneas. A primeira fez muito sucesso. Apresentamos agora a segunda que, com certeza, vai repetir o mesmo triunfo de audiência. Lembrando que a ordem de apresentação é aleatória.


In(Sanidade)

Meio robô, vindo do bar. A barba crescendo. Um louco. Não era. Afinal: animal postiço, perdido no submundo, humano. Descalço. Virgem. Ainda. Ruindade de bebida na boca, prótese velha. Mordeu a língua, o fruto, a semente. Rascunho de homem.  Nem isso.

Sônia Elizabeth

Grito

Olhou o relógio por vários segundo. Acompanhou com o olhar o ponteiro se mover, com a garganta apertada, dolorida. Talvez o urro entalado estivesse causando tudo aqui. Viu os ponteiros, menor e maior, chegar ao 12. Afinal era Ano Novo. Engoliu o grito, apagou as luzes e dormiu.

Josh Le Fey

Missão cumprida

Sozinha na Terra, senta a Morte.
E chora.

Cristiano Deveras

Máquina do tempo

Entrei nessa máquina do tempo chamada foto, sai de lá mais jovem, não por idade, mas por relembrar como é bom viver e ser feliz como uma criança.

Nathália Pinheiro

Toda vez

Ela, chegada em casa, cansada do trabalho, louca por um banho, não queria abrir as notícias e ver com seus próprios olhos ele provar que santo de casa não faz milagre, literalmente!, perante os demais membros da academia.

Danilo Baldacini

Indelével

Ficamos olhos nos olhos. Quis quebrar o silêncio, mas já me perdia de mim. A perícia não encontrou sinais de luta no apartamento. Investigação encerrada.

Ernane Catroli

Lua

José sucumbia de dores lunares por plantar bergamotas celestes nas visões gris dos mares sulcados. Suava bilirrubinas nos cataplasmas de alcatrão. O remédio? Gargarejar com poesia, noite e dia. Por isso, visita sonhos — os seus, até! — invadidos sem dó pela sua luneta sem tripé.

Carlos Edu Bernardes

Um zero à esquerda

Chamado de Zero por todo mundo descobriu que não valia nada.

C.J. Oliveira

Fúria no casebre da rua

No final da rua, um rio turvo de curvas sinuosas. Uma criança no último casebre observa. Deseja um mergulho. Não pode! Está presa à uma corrente no pé da mesa. O tempo muda de repente. A chuva cai com violência, arrancando tudo e o rio engole com voracidade.  Laura é levada pela enxurrada. Libertou-se. Ela nunca mais foi vista.

Elaine Maria Machado

Enfim

Você chegou.
Findam as noites escuras.
Enfim, sóis.

Lidiane Carolina

Tilintar

Se jogasse uma moeda no poço dos desejos poderia realizar um sonho; se tivesse uma, iria depositá-la no chuveiro do posto. O desejo que nutria naquele instante era o de um banho quente em mais uma noite fria.

Lilly Araújo

Diálogo interior

Quando ele chegou, ele já estava lá. Quando ele estava lá, de repente, ele se viu chegar. Surpresos, eles passaram horas em um monólogo sem fim.

Cristiano Siqueira

Toalha de Natal

Maria foi ao cemitério com máscara e capa transparente. Aquelas semanas tinham feito de seu corpo um amontoado curvo, sem vida. “Falta de oxigênio”, gritava. No noticiário da noite, três caixões cobertos com chita de fundo verde e flores grandes, vermelhas.

Luísa N

Vinho amargo

Ele não chegava. O vinho ficou amargo. Scarpin, meia, cinta-liga, espartilho, tudo sufocava. Dante e sua emenda. A noite era para a democracia, mas ele não se livrou do trabalho. Ela não era Beatriz, e estava no Inferno. Naquela noite não foi eleita. Ela e muitos choraram. Adna de Oliveira, lembrando de uma noite em 1984.

Adna de Oliveira

Ambrosia e felicidade

Ovos, leite cru, pouco açúcar, cascas de limão e canela, tacho de cobre, fogão a lenha, tradição em família. A ambrosia ficou pronta, aniversário do Levi, que estava de dieta. Foi só uma tigela pequena, consciente. Ninguém viu a transgressão, mas viram a felicidade do velho Levi.

Enio Magalhães Freire

Carvalho

Ele se enforcou debaixo daquela árvore antiga. Não era alta, nem baixa, mas retorcida e encurvada.

Eduardo Lima

Pós-COVID

A última vez que saiu de casa, a vida era outra. Seus rabiscos de mundo, interior e extrínseco, velhos mundos, colidiram. Brevíssimo, reanimou os passos à porta. Checou as travas, suspiro afora. Recuou ante o infinito.

Gabriela Lima

Morreu, mas, passa muito bem

Extraiu o pior de mim, parte por parte. Limpou meu mel até me zangar. Fez de minha boca despejo de todo amor líquido, afoguei. Pegou minhas curvas, sem desvios ultrapassou limites. Invadiu-me com tanto ódio contido e premeditado que sem saída, após a explosão, me matou de prazer.

Marielle Sant’Ana

Chuva

Celso observava a chuva na janela. Via o reflexo de Alice, seu primeiro amor e que hoje encontrara por acaso ao sair do trabalho. Os cabelos da moça continuavam negros e cacheados, por um momento sentiu o cheiro que emanava dela. Sentiu saudades de quem poderia ter sido com ela.

Thiago Lima


Bônus

O miniconto de Isadora Vilela ultrapassou os 280 caracteres originalmente definidos, mas por considerá-lo de alta qualidade literária e relevância estética, a comissão optou por publicá-lo como um bônus.

Março, 2021

Ao ritmo da bola de pilates, recebe a notícia sobre um novo recorde: 3.251 mortes registradas nas últimas 24 horas. Maquinalmente, desliga a TV. Mas a voz do repórter parece ignorar o gesto e continua ecoando o número de guerra. A bebê, que só dorme no vaivém, agarrada à mama esquerda como chupeta, logo adormece e é levada ao berço. Antes do banho, fita o espelho. Tenta localizar resquícios de juventude no espectro empapuçado que lhe pisca e exibe manchas marrom azuladas abaixo dos olhos. Acha bonita a pregação do autocuidado. Tão bonita quanto impraticável por mães solos vivendo uma calamidade pública. Regula o chuveiro para o modo inverno. Fugaz, como os estalidos da resistência, fantasia que escorre para o ralo a água morna, a espuma do sabonete de calêndula e seu ventre dilatado de oito meses.

Isadora Vilela

Ademir Luiz

É doutor em História e pós-doutor em poéticas visuais.