Em sua obra intitulada “A Interpretação dos Sonhos”, o psicanalista Sigmund Freud explicita que esforçar-se-ia por elucidar os processos a que se devem a sua estranheza e a obscuridade, ainda que pouco ou nada que aborde a sua natureza essencial possibilite uma solução final para qualquer dos enigmas dos sonhos. Deste modo, aviso aos navegantes: este ensaio não se predispõe a elucidá-lo, absolutamente; entretanto, se inclina a utilizá-lo como metodologia de leitura, que prognostica a prevenção como modo eficaz de combate às aflições psíquicas do Homem pós-moderno. Neste compasso, eis que se prescreve o Receituário por meio da literatura, sob forma de breve contribuição ao estado de saúde mental do Leitor, que se quer são e hígido em lucidez. Assim sendo, o indivíduo apto ao ato de Ler anteceder-se-ia ao diagnóstico clínico, subscrito pela consternação agônica do espírito, às margens do abismo da existência que, por vezes, impele o ser humano ao suicídio físico ou moral.
A semeadura de sonhos, devaneios, quimeras e afins, em pântano fértil e movediço do imaginário, por conseguinte, se instaura a partir de sugestões de dois clássicos literários, a se iniciar por “Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes Saavedra. No livro de 1605, o Leitor irá de se deparar com o mais completo compêndio da condição humana, no âmbito da imaginação fantástica, a partir da comicidade da narração sobre este cavaleiro andante pós-medieval. Em retorno ao capítulo introdutório, o próprio Freud, em seu esboço científico supracitado, salienta que vem a ser difícil escrever uma história dos problemas dos sonhos. Não obstante, como não nos propusemos a historicizar a problemática em questão; e, sim, fazer uso do sonho como antídoto contra os malefícios que atingem o espírito do Leitor, a indicação de leitura do “Dom Quixote” se justifica, não só pelo caráter humorístico do enredo, assinalado pelo episódio dos moinhos de vento; mas, sobretudo, pela abordagem da conduta da personagem, que se deflagra pela ruptura contra a própria História da ficção ocidental.
Neste sentido, o tresloucado fidalgo já cinquentenário insurge-se com o desígnio de reescrever as páginas da Literatura do Ocidente, à mercê de peripécias após a leitura incessante da prosa de ficção imposta pela Idade Média; leia-se: Novelas de Cavalaria, no raiar do Renascimento, nos primórdios do século 17. Destarte, acompanhado de seu fiel escudeiro, Sancho Pança, o fleumático, destemido e caricato, com a indumentária de cavaleiro fora de época encontrada no porão de sua ancestralidade, há de se aventurar ao duelo contra o inimigo imaginário, ao passo que se defronta contra o padrão narrativo pré-estabelecido pela tradição trovadoresco-medieval, utilizando-se do Sonho como artifício ao subscrever-se pelo intradiscurso setecentista.
A princípio, tal designação ficcional se origina quando o autor se refere ao não palpável da escritura, como se esta se derivasse de um palimpsesto, que se revela à proporção que o Leitor adentra a narração, desnudando-a, consoante a decifrasse. Desta feita, por detrás dos arroubos heroicos do protagonista, se ausculta a conjectura de revisão da discursividade sedimentada pela novelística medievo-trovadoresca. Nisto, o capcioso Cervantes, ao mesmo tempo em que prende a atenção do “desocupado leitor”, conforme o autor o chamará no prólogo do livro, com as investidas desvairadas do Cavaleiro da Triste Figura, abalroado das leituras das narrativas derivadas de poemas épicos e das canções de gesta, se introduz um mecanismo de substituição da prosa de ficção originária da Idade Média, de modo a se constituir as diretrizes estéticas da obra literária renascentista, que se reinaugura com a constatação da nomenclatura a. D.Q.L.M. e d. D.Q.L.M.; ou seja, antes e depois de “Dom Quixote”.
Logo, a primeira sugestão de leitura que paira sobre se decodificar o enigma “Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes, como instrumento de prevenção aos prejuízos psíquicos causados por meio dos danos mais incisivos contra a força intelectual humana, se dá, sobretudo, pela inserção que, por sinal, nos impulsionam ao diálogo com a análise freudiana, que nos incita ao seguinte questionamento de ordem subjetiva: “Pode-se afirmar que o que quer que os sonhos ofereçam, o seu material será extraído da realidade, tomando-se de empréstimo o que ocorreu no mundo dos sentidos; ou do que já encontrou lugar em algum ponto do curso do pensamento; em outras palavras, do que já experimentamos, externa ou internamente”.
Neste diapasão, a segunda indicação literária, para combater depressão, espinhela-caída, solidão, ventre-virado ou olho-gordo, virá à tona após três séculos e meio da publicação do “Dom Quixote”: o romance “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa. No processo dialógico com a ambiência onírica, sob a perspectiva do sertanejo como Homem universal, interessa-nos o episódio denominado “sonhice”, para cotejamento com o registro freudiano em epígrafe. Nele, as suposições utópicas ou sulfúreas de Riobaldo-Tatarana conduzem-no ao afã de cogitar a possibilidade psicodélica de Reinaldo/Diadorim se converter em corpo de mulher, ao transpassar as sete cores do arco-íris.
Em “A Interpretação dos Sonhos”, o velho filósofo Burdach assevera que o sonho nada mais faz do que entrar em sintonia com nosso estado de espírito, ao representar a realidade em símbolos. De tal sorte, afirmar-se-á que Riobaldo, aficionado por Reinaldo, se arvora a sonhá-lo com a assinatura de Maria Deodorina, o que, de fato, o era em sua certidão de batismo. Neste sentido, a “sonhice” do jagunço Riobaldo o remetera às predições adotadas por filósofos da Antiguidade clássica, em relação à adivinhação, conforme exemplifica Freud. Em regresso ao “Grande Sertão”, os obstáculos impostos pela ruidosa inventividade — desconfia-se que, qual Manoel de Barros, a lavra rosiana fosse produzida em alambique de coloquialidade e erudição —, podem impulsionar o Leitor a excitar-se, intelectualmente, diante desta Odisseia country das Minas Geraes.
Diante das complexas construções sintáticas, conquanto este Leitor seja recebido a ferro e fogo, o impacto da organização das ideias alicerçado pelo esplendor de sua prosa encantatória faz de Guimarães Rosa um legítimo gênio da arte literária. Se esta justificativa ainda não for suficiente para enfrentar a leitura para alívio do mal-estar da sociedade, recomenda-se entranhar na prosódia forjada pelo binômio, que abrange o pacto com o Demo; e a paixão proibida por Reinaldo/Diadorim. Enfim, pode-se adiantar que remédio melhor não há para se espantar quebranto, ansiedade ou mau pressentimento, que há, apenas, a constatação de que, aos treze anos, ela já se travestia de Reinaldo (Menino); e, no momento em que, após peleja, a punhal, contra o demoníaco Hermógenes, se revela o segredo de sexualidade de Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins. Isto porque, na exegese de seu devaneio, o jagunço-narrador Riobaldo-Tatarana, freudianamente, jamais suporia que “os sonhos não decorrem de manifestações sobrenaturais, visto que seguem as leis do espírito humano, ainda que este, é verdade, tenha afinidades com o divino”.